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“Novas Mentalidades e Atitudes: Diálogos com a Velha Educação de Sensibilidade” Prof. Dr. Marcos Ferreira Santos, CICE/FEUSP
“ Para viver dignamente e não ser aplastado e
arrastado pela necessidade do mundo,
Dentre os vários problemas que o ser humano vem enfrentando ao longo dos séculos para assegurar a sobrevivência da espécie, um dos mais antigos e mais importantes, sem dúvida, é o problema da preparação das novas gerações, pela geração atual, para enfrentar os mesmos problemas que ainda não foram solucionados e para enfrentar outros que virão. Esta é uma temática universal e, por que não dizer, arquetipal: isto é, faz parte da memória do ser humano e não somente parte da memória individual de uma única pessoa. Como preparar novas gerações com o conhecimento que dispomos hoje, sabendo que as inovações tecnocráticas, bioenergéticas e midiáticas tornam obsoleto o que até ontem era atualíssimo? Como nos relacionarmos com os alunos concretos que temos à nossa frente com todas as suas resistências, desinteresses, curiosidades e ansiedades? Como responder aos olhares que perscrutam uma referência de atitude, uma orientação, no sentido mais antropológico do termo? Percorrendo os documentos da história, quantas lamentações idênticas às atuais queixas (indisciplina, apatia, revolta, falta de valores, etc...) não ouviremos dos mestres egípcios ou dos “didáskalos” (mestres) gregos da educação na antigüidade!
A partir do intercâmbio virtual entre estes educadores da antigüidade e os de hoje, além da necessidade de ambos em dialogar com a inquietude e com as alternativas possíveis, nos prova, a todo momento, algo extremamente óbvio. Óbvio, pelo menos, para quem ainda dispõe-se a olhar para o céu quando sai ao trabalho pela manhã e diz “bom dia” ao transeunte e ao jardineiro: é necessário sensibilidade. Numa rápida e simplória reflexão sobre os últimos caminhares das Ciências (naturais e humanas), da Filosofia e da Educação, podemos verificar o ápice de nossa jornada: velocidade de informação, controle genético, explorações espaciais, mergulhos cada vez mais profundos na intimidade das substâncias, das células, elétrons, quarks... Ao mesmo tempo, os frutos do predomínio da Razão que se crê absoluta são evidentes, por si mesmos, da insuficiência cega dessa mesma Razão: armas biológicas na Primeira Guerra Mundial, holocausto, Hiroshima e Nagazaky, Coréia, Vietnã, Klu-Klux-Klan, Chernobyl, Líbano, Bósnia, operações “tempestade no deserto”, golpes militares, perseguidos políticos, desaparecidos, exploração e prostituição infantil, violência urbana, violação de direitos básicos da pessoa, etc... O cíclope da Encyclopèdie devora como Cronos devora a seus filhos... Poderíamos multiplar esta lista ad infinitum, mas poupemo-nos a memória um breve instante e fiquemos por um momento com a singeleza de algumas imagens a nos guiar o devaneio poético-educador. As mesmas flores que soterramos com nossas granadas e fuzis, nos deram lírios de luz franciscana, de perfume e frescor incomparáveis, nas obras da Cultura que herdamos e que legamos para as futuras gerações. Acreditamos que educar o olho para enxergar as flores e o céu, assim como educar a mão para cultivá-los (céu, flores e amigos) seja a divisa mais importante no mundo da Cultura, no seu sentido mais agrário: rasgar o solo árido, revolver a terra, plantar a semente, irrigar com um pouco de poesia e partir para outros campos, pois para o educador que aspira a ser uma sombra do didáskalos (o mestre autêntico de que nos fala o filósofo Georges Gusdorf), não se espera a pequena planta crescer. Terminado o plantio, segue para outros campos, pois o trabalho é imenso e sementes existem várias.
Se lhe aflige a angústia de um local de trabalho que oprime, segue para outro onde possa cultivar o jardim (Képos) da ética epicurista: no reino da philia (amizade e paixão), com aqueles que lhe são caros, queridos e próximos - na partilha do pão, do vinho e dos livros - preparar o tempo futuro. Sob a águia da pax americana e do Kapitalismus Geist, vivemos novo império macedônico a pilhar, saquear e banalizar a vida cotidiana. A diferença é que a adolescência audaz de um Alexandre, o Grande, cedeu espaço para o delírio globalizante de um empório global. A preceptoria de um ilustre escravo grego, chamado Aristóteles, cede lugar à primazia de um obscuro e invisível Adam Smith, como nova e insuficiente figura adâmica. Para os que ficam na espreita do caule tenro que germina, a esperança ativa de se refrescar à sombra da copa arborescente que se ergue de um tronco forte e de galhos generosos que, se ainda mais generoso, nos der flores e frutos, mostrarão os resultados do cultivo. No prolongamento de uma pedagogia da demonstração vivifica uma pedagogia da “mostração”. Singela, humilde e autêntica insistência na Presença humana. Sem dúvida, seria desejável modificar o nosso olhar sobre as coisas e, modificado o olhar, amanhar a própria mão, tornar reto o andar dos pés cansados, e descobrir que o diálogo é a condição primeira do conhecimento: descobrir e descobrir-se no Outro. Depois de jornadas difíceis nas pesquisas mais recentes e profundas na epistemologia, na antropologia, na sócio-antropologia do cotidiano, na filosofia e na educação, só nos resta seguir o caminho aberto por aqueles que arriscaram - assim como o peixe que largou os pesados abrigos e rasgou o caminho que levou ao homo sapiens (nos lembraria o mestre filósofo Emmanuel Mounier) - descobrir que antes, durante e depois da Razão há outras florescências que garantem a vida e a transmissão da vida, garantem o sonho e a transmissão do sonho, garantem a utopia e a sua realização.
Em meio a estas florescências descobrimos o imaginário, o mytho, o devaneio poético, a obra literária, as obras de arte, os monumentos da Cultura: todos a nos contar a verdadeira saga humana. Nossa preocupação é educar ouvidos para que ouçam esta saga que brota de uma voz silenciosa no olhar atento do aluno que percebeu que tínhamos muito mais do que uma inocente história para contar... A partir daqui seremos mais alguns candidatos a didáskalos que, com o diálogo e o conhecimento, cultivaremos os campos, olhando o céu, dizendo bom dia e tentando fazer bons dias no mais insólito e, realmente, vivido cotidiano. E se, ao menos, em meio às novas gerações, alguém se lembrar do quanto uma razão sensível é importante para a sobrevivência humana. E se contar para um terceiro, dessa importância estampada nas obras da Cultura, no prosear de um fim de tarde, ou numa sala de aula (se ainda houver salas de aula!), acreditamos que a aurora humana virá ainda por mais alguns séculos. Pois, a paixão de educar não se reduz a um corpo teórico de reflexões. Necessita dele, mas o ultrapassa no olho sincero e na mão obreira e amiga. Segredos de temperança (sophrozyne) que o ferreiro, forjador de Cultura, nos secreta no fogo úmido, no ritmo e na melodia cíclica que faz do martelo, da bigorna e do metal, uma preciosidade que emerge lisa, límpida e lustrosa do que antes era apenas matéria prima. Emerge do concerto entre o olho e a mão. Mesmo quando ambos, professor e aluno - mestre e discípulo possíveis - dizem um adeus prazeroso em virtude do cultivo findo. Um aceno e uma lágrima furtiva são imagens que nos dizem e nos ensinam o quanto frutífero foi o encontro. Mas, a esperança... a mesma esperança que Gilbert Durand nos diz ser a grande função matriz do imaginário: a esperança de novos encontros norteia o passo hesitante. E basta um vislumbre de novos campos para que, parafraseando Gaston Bachelard, a imaginação da vontade acorde do conforto do repouso e ponha em movimento o eterno criar humano.
O pólo racional desta razão sensível organiza a complexidade dos fenômenos, dando-lhe organicidade, unicidade e coerência a partir da multiplicidade, valendo-se das mais várias lógicas possíveis - desde a similitude, a hermetio ratio, as pluri-lógicas, a lógica da Energia de Lupasco e outras tantas - reconduzindo a lógica aristotélica e o pensamento cartesiano (pilastras do pensamento ocidental) aos seus próprios limites. Portanto, há uma função “estética” na organização lógica da racionalidade. O pólo sensível da mesma razão sensível configura a experiência estética do estar-no-mundo e suas imagens e símbolos, na busca constante de constituir sentido à existência. Sendo uma existência tríplice: Ser - com o Outro - no Mundo, o humano necessita expressar sua pertença e seu estranhamento através de formas simbólicas, as quais nos ensina o mestre Ernst Cassirer, são o mytho, a religião, a linguagem, a história, a ciência, a arte. A produção artística é, exatamente, o meio pelo qual a criação é colocada como questão ontológica para o humano. A rigor, sem esta criação, não há construção humana, pois, é preciso lembrar também que a humanidade em nós é, duramente, construída no desfile solene dos minutos cotidianos do mais insólito banal. A humanidade em nós não é um dado a priori. É uma construção, um afrontamento. Portanto, há uma função “lógica” na simbolização da experiência sensível. Os dois pólos da razão sensível formam uma tensão constante e indissociável que, de forma recursiva, solicitam-se, antagonizam-se e complementam-se. Seu equilíbrio é a busca. Como o yang e o yin da mônada chinesa ([) que complementam-se na tríade do Tao: o equilíbrio é o terceiro elemento. A dimensão latente que complementa o patente, também verificamos no universo hindustani: a sílaba mântrica Om (\ ) [aum] é composta de quadro elementos. Além das três letras, há o silêncio de onde ela também provém e para onde tudo se dirige. Portanto, o equilíbrio que buscamos está a milhas de distância da estática. Ou ainda mais rigoroso e radical: a busca é a condição de equilíbrio.
O exercício e as atitudes de uma razão sensível se articulam, prontamente, com outra polaridade: a imagem-lembrança. Imaginação e memória se fundem e se reconstituem no solo arquetipal:
Nesta articulação de imaginação e memória, a liberdade da criação atualiza sonhos e angústias na memória da humanidade. Uma invariância arquetipal confere unicidade à multiplicidade de formas culturais nos espaços geográficos e no tempos históricos, através de um tempo primordial. Uma imagem cósmica se impõe na percepção de nossa situação existencial e de nossa finitude. “As imagens cósmicas são por vezes tão majestosas que os filósofos as tomam por pensamentos”. Então, percebemos que, ao contrário do que há séculos nos ensinaram a pedagogia da demonstração, o conceito é um rascunho da imagem. Talvez, antes que o furor epistemológico do pensamento minimize o vigor vivencial da imaginação, seja desejável ressaltar nossa variabilidade cultural que se apresenta interessante para reviver e experienciar imagens próprias do anthropos latino, exemplificando as novas atitudes de uma velha educação de sensibilidade, para além do etnocentrismo europeu. Uma dessas imagens que nos remetem ao universo arquetipal do ventre materno é a “vasija de barro”. Na região andina, entre quechuas e aymaras, após a morte de uma pessoa, ela é mumificada com técnicas muito semelhantes ao processo de mumificação egípcio. No entanto, o corpo fica em posição fetal, e ele é depositado no interior de uma grande vasilha de barro, junto com pertences que levará na travessia ao outro mundo.
Algumas vertentes dizem que a alma do falecido ficaria, neste estágio intermediário, sob a forma de uma mosca azul e que depois retornaria ao corpo original. A esposa de um sacerdote teria chorado piamente pela morte de seu amado. A partir daí, o ser supremo, Kon Tisi Illa Wuiracocha (a partir do quechua: “senhor de face repleta de espumas, a poderosa raiz do universo”), decreta como sentença, o não retornar mais ao corpo original. O drama da finitude se instala. Neste relato mythico, o mythema principal é o retorno. Retornar ao corpo ferruginoso do barro, da terra úmida cozida, ao ventre escuro e fresco. Um tema folklórico da região onde hoje se encontra o Equador, chamado “Vasija de Barro”, recopilada e adaptada por V. Valencia, nos exemplifica o mythema:
Construída no ritmo ecuatoriano chamado danzante que remonta a danza incaica, ou ainda ao yaraví, de estrutura cíclica e compasso binário, é executada com grande freqüência na paisagem da cordilheira com um característico instrumento de viento (flauta) chamado quena. Segundo versões de fortes traços mythicos, a quena teria sido construída também por um sacerdote, um amauta, nos tempos imemoriais do império incaico, o Tahuantinsuyu (quechua: “Reino das Quatro Direções”). Como era uma sociedade estratificada por castas, o amauta se apaixona secretamente por uma Ñusta (princesa incaica), a qual, também, secretamente, percebe o amor devotado pelo sacerdote. Vivendo este amor impossível, a urpillita morre de tristeza. O amauta, depois que ela é recolhida na funerária vasilha de barro, retira a sua tíbia. Com carinho, a limpa, perfura com sete furos, aproveita a ranhura superior e abre uma embocadura que se ajusta aos lábios. Aí nasce a quena com a mesma medida que a tíbia humana, com seu som melancólico e profundo de quem beija a amada na embocadura e a anima com o sopro da música. Novamente o retorno, através da produção artística e da experiência estética. Aqui entenderíamos porque o mestre Joseph Campbell nos diz que a imagem se inscreve no corpo: o mytho é música e a música provém do corpo. Em profundidade, vivemos o destino de nossas células.
Outro exemplo, verificamos nos símbolos de transformação na canção folklórica venezuelana, cujo nome retrata o próprio ritmo: Polo Margariteño. Ritmo herdado da Espanha meridional, teria ainda, segundo a musicóloga Isabelle Aretz, conservado características do polo andaluz ao ser apropriado pela Ilha de Margarita, na costa da Venezuela. Numa incomparável interpretação de Soledad Bravo, ao cuatro venezolano, uma das versões diz:
O rasguido no cuatro venezolano é cúmplice do ritmo quase que copulativo das mãos sobre as quatro cordas desta pequena guitarra construída com fina folha de cedro. Instrumento básico de harmonia e acompanhamento nos ritmos dos llanos venezuelanos e colombianos, também há virtuoses que fazem dele um instrumento solista. Esta herança andaluza faz do polo margariteño um emblemático exemplo da profundidade do retorno, agora transformado. O lírio não se consome pelo tempo. Sua florescência é quase eterna e quem lhe floresce é a fonte que, ao mesmo tempo, é o sujeito que pede perfume. Lembra o mestre Bachelard, o perfume é, exatamente, o elemento que possibilita nossa fusão com as coisas. Nada impede que ele nos penetre e nos envolva. Como fonte, na canção, pede que lhe deixem correr. O movimento das águas é a mudança constante daquilo que permanece. Para ser o que se é. Transformar-se, ininterruptamente, alcançando aquilo que lhe é específico.
Acompanhando o perfume na brisa que suspira, novamente a transformação se dá no abrir-se da rosa branca. De uma prisão de seda, que nos lembra a narrativa mythica de Sheng (bicho-da-sêda) na China, sai o gusano (lagarta) que se transforma em bela borboleta. A prisão precede a liberdade e o atemporal precede o movimento. Os contrários são chamados a se complementar. A estrofe que abre e termina o polo margariteño também é emblemático de nossa postulação de uma razão sensível: “o cantar tem sentido, entendimento e razão” que se complementa à “boa pronunciação do instrumento ao ouvido”. Razão e sensibilidade, aliados à ancestralidade. Com as cores latinoamericanas temos a recorrência dos mesmos padrões arquetipais. Por isso, a fórmula de Nietzsche continua válida: “amor fati” (amar o seu próprio destino), que por sua vez, é tributário de Arthur Schopenhauer: “Minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo (...), mas amá-lo.”. Tanto “(...) assim como o fatum pairava sobre os deuses dos antigos”. Entendida desta forma, a educação de sensibilidade perpassa as práticas iniciáticas à Cultura (mundo simbólico), através da cultura (no sentido agrário e hermesiano) das várias culturas (de grupos sociais num determinado espaço-tempo). Valendo-se das Artes (plásticas, musicais, literárias, videográficas e fílmicas) em que as imagens e os símbolos, articulados em narrativas articulam, por sua vez, o patrimônio histórico-cultural do humano e sua memória com o repertório cultural cotidiano dos alunos e suas trajetórias individuais, tornando-os significativos, e possibilitando-lhes a sua apropriação, perlaboração e re-elaboração poiética. O conhecimento retorna, então, ao coração, cumprindo seu destino.
É nesta região, “onde o sol nascente se dissolve por inteiro na bruma infinita.” em que um regime crepuscular de imagens une a memória, o re-ligare e a esperança de um futuro na necessidade teanthrópica da criação: poiésis. Eis também o fundamento de uma pedagogia árabe do dhkir, pois, antropologicamente, “o homem é, fundamentalmente, um esquecedor: daí a necessidade das filhas de Mnemosyne para lembrá-lo.”: as musas. Aguçando a sensibilidade de nossos alunos numa clara tentativa de elisão dos etnocentrismos, onde a diferença e a alteridade sejam valores solidários minimizando o preconceito e a intolerância, esta educação de sensibilidade, numa prática crepuscular, no sentido que vimos tratando, circularia imagens-lembranças sob o pretexto dos conteúdos programáticos do currículo escolar. Tal prática desemboca na iniciação à humanidade no humano e na constituição e engendramento de mestres, no sentido preciso de Gusdorf. Para tanto, uma abertura inicial é imprescindível. Na nova atitude e mentalidade percebemos algo tão antigo como arquetipal: a paixão pelo Outro, abertura na presença humana, numa palavra: respeito. Ao nosso caro burocrata assustado ao nos ver às voltas com crianças, ondinas, sílfides e salamandras crepusculares lembraríamos de bom grado que, sem poesia e sem sensibilidade, a verdadeira criação não se faz. O seu simulacro se converte em mera técnica. E só o poder perpetua a técnica. A criação exige poesia... E a poesia, tão somente, de um prelúdio de silêncio...
Dedicado a meu Anjo Azul, |
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