Dados para citação de trechos desse texto:

BERNARDO, P. P. Do Caldeirão de Sementes à Harpa Encantada. (p. 215 a 232) in: Vieira, M. C. T., Vicentin, M. C. G., Fernandes, M. I. A. (org) – Tecendo a Rede: Trajetórias da Saúde Mental em São Paulo. SP: Cabral Editora Universitária, 1999.

 

 

(pg 215 do livro)

 

DO CALDEIRÃO DE SEMENTES À HARPA ENCANTADA[1]

Patrícia Pinna Bernardo

 

  

“... a natureza nos servirá de guia, e a função do terapeuta será muito mais desenvolver os germes criativos existentes dentro do paciente do que propriamente tratá-lo.”(C. G. Jung)

 

Caminho com as crianças pelo parque. Cada uma delas vai aos poucos reconhecendo o chamado silencioso da vida que espera e busca ser despertada. Olhamos para o chão como garimpeiros. Compartilhamos nossas descobertas. Voltamos para o salão como quem encontrou tesouros em forma de folhas, pedras, gravetos.... Trabalhamos sobre a matéria prima coletada como alquimistas que, com tinta, argila e papel, a submetem às operações necessárias para que o espírito que a anima ganhe voz e se faça presente. E todo o nascimento é sempre um milagre! Pelo menos olhamos para o que foi produzido em cada oficina com a emoção e o encanto com que uma mãe olha para o filho que acaba de parir. E é muito bom saber-se ventre capaz de amalgamar vivências, anseios, sentimentos, sonhos e transmutá-los em vida pulsante e em luz-consciência.

 

“Debulhar o trigo

recolher cada bago do trigo

forjar no trigo o milagre do pão

e se fartar de pão...

 

Decepar a cana

recolher a garapa da cana

 

(pg 216 do livro)

 

roubar da cana a doçura do mel

se lambuzar de mel...”

                       (O Cio da Terra - M. Nascimento e C. Buarque)

 

 

As oficinas de artes que eu coordenava no Centro de Convivência e Cooperativa São Domingos (onde trabalhei como psicóloga da saúde entre 1992 e 1995) eram semanais e tinham a duração de um semestre. O salão onde elas aconteciam ficava na entrada do Parque São Domingos (Pirituba - São Paulo). Utilizávamos eventualmente a área verde do parque para buscarmos materiais que seriam usados nas oficinas.

As crianças chegavam ao CECCO encaminhadas pelos serviços de saúde e instituições educacionais da região ou por procura espontânea. Os grupos eram heterogêneos, compreendendo crianças que apresentavam diferentes problemáticas e as da população em geral, sendo compostos por seis a oito participantes de uma mesma faixa etária.

O contexto das oficinas (grupos que não se formam para crianças “hiperativas”, “deficientes mentais”, com “distúrbios de comportamento”, etc., mas para crianças, que podem eventualmente apresentar essas dificuldades mas que não se caracterizam por elas) e as atividades desenvolvidas (possibilitadoras da auto-expressão, buscando partir do interesse e necessidades dos participantes), favoreciam o estabelecimento e a abertura para a possibilidade de novas formas de relacionamento e posicionamento.

Além de crianças, o CECCO São Domingos também atendia adolescentes, adultos e idosos em geral; população egressa da rede de assistência à saúde e pessoas que estavam sendo atendidas por outros equipamentos da região (UBS, HD, Hospital Geral, PS, etc.); indivíduos que, por suas características e necessidades especiais, não se enquadravam nos programas específicos de atendimento (as pessoas que precisavam de tratamento específico não freqüentavam exclusivamente o CECCO). Instalado num parque, favorecia assim a entrada e apropriação do espaço público por pessoas com diferentes problemáticas. As pessoas recebidas pelo

 

(pg 217 do livro)

CECCO passavam por uma entrevista de triagem, sendo então encaminhadas para uma ou mais oficinas. Eram feitas entrevistas iniciais e de acompanhamento com cada usuário, além de contatos periódicos com profissionais de outras unidades. Além de oficinas de atividades (recreativas, artísticas, esportivas, etc.), coordenadas por uma equipe técnica multiprofissional (psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistente social e educadora de saúde), eram também realizadas oficinas de trabalho (consideradas como uma fase intermediária para o ingresso no mercado de trabalho formal ou informal, podendo desdobrar-se em cooperativas de trabalho em regime de economia popular) e trabalhos externos (palestras e orientação de professores em escolas, passeios, assessoria a associações, etc.).

Ao final de cada semestre eram feitas devolutivas com os pais e com os demais usuários, que poderiam inscrever-se nas mesmas ou em diferentes oficinas. Nessa época, a equipe técnica também reavaliava o trabalho realizado, havendo a reestruturação do cronograma de atividades.

Em seu projeto, o CECCO tinha como objetivo “facilitar e estimular a criatividade, a participação coletiva, a aprendizagem e a desalienação que partem de um conhecimento de si, do outro e da comunidade.”  Sendo assim, era um espaço que propiciava o questionamento sobre o trabalho com recursos expressivos enquanto facilitadores de um envolvimento participante e consciente com a realidade. 

Segundo a psicologia analítica de C. G. Jung, o inconsciente pode ser concebido como um reservatório de sementes enquanto possibilidades de vir-a-ser (arquétipos) que vão sendo contextualizadas e atualizadas nas relações eu-mundo, ao longo do desenvolvimento, através da vivência e elaboração de símbolos. Dentro dessa visão, a consciência nasce e se amplia a partir do “caos” inconsciente, num processo análogo à cosmogênese  (Neumann, 1990).

À medida que a consciência vai se estruturando e se expandindo, não ocorre um distanciamento de sua fonte, o inconsciente. Como é a partir dele e da relação incessante com ele

 

 

 

 

(pg 218 do livro)

 

que ela se constitui, estabelece e expande, necessita ela sempre a ele retornar, para se realimentar, para não perder sua conexão vital (Freitas, 1987).

 

Toda experiência humana é passível de tornar-se simbólica e promover a estruturação da consciência. Byington (1988) ressalta a importância das vivências corporais, sociais, ideativo-emocionais e relativas à natureza para a estruturação da consciência.

Segundo Edinger (1989), é importante ajudar a criança a ir saindo de seu estado inflacionário (de identificação com os conteúdos inconscientes) sem que os limites e regras a ela impostos sejam tão rígidos a ponto de bloquear a espontaneidade, o que dificultaria um relacionamento adequado com a dimensão inconsciente (que traz o novo) e acarretaria uma interação empobrecida e pouco criativa com a realidade.

Cada movimento de abertura ao novo envolve um mergulho no caos (contato com conteúdos inconscientes), uma morte simbólica (perda de alguns referenciais já consolidados) e um renascimento (ampliação da consciência, o que faz com que o mundo se nos apresente a partir de um novo ponto de vista).

 

O amor da gente é como um grão

                        uma semente de ilusão

tem que morrer prá germinar

...

quem poderá fazer

aquele amor morrer

se o amor é como um grão:

morre nasce trigo,

vive e morre pão... (Drão - G. Gil)

 

Pode-se supor que a aquisição e o desenvolvimento de recursos que favoreçam a expressão e elaboração de vivências é de extrema importância para uma vida psíquica saudável, entendendo saúde como poder posicionar-se diante do mundo (interno e externo) de uma maneira não alienada, atuante e responsiva, sendo capaz

 

 

 

(pg 219 do livro)

de estabelecer relacionamentos em que o conhecimento de si e do outro possa realizar-se continuamente com todo o seu potencial renovador e vital.

Atualizar e exercer o potencial criativo equivale simbolicamente a participar da Cosmogonia. O ato criativo rompe a inércia do movimento contínuo: abre caminho para novos significados, possibilitando novos percursos e instigando novos procedimentos.

A arte sempre ajudou o homem a conhecer, organizar e transformar o seu mundo. No processo de ordenação e articulação de suas experiências, as diversas linguagens (corporal, musical, plástica, verbal) surgem como formas de compreensão, comunicação e significação. (Ostrower, 1978)

As atividades artísticas promovem um diálogo amoroso, prazeroso e fluente entre o “dentro” e o “fora”, o eu e o mundo, a consciência e o inconsciente. Nesse sentido, podem ser utilizadas como recursos terapêuticos ou profiláticos, contribuindo para que o crescimento psíquico seja retomado ou tenha continuidade em seu curso. A energia liberada e movimentada nesse processo pode ser então canalizada em direção a novas formas de ser-no-mundo, de posicionamento e relacionamento.

Ao trabalhar com materiais extraídos da natureza, a criança tem a oportunidade de dar concretude e voz às suas imagens internas, além de vivenciar a capacidade de transformação da matéria.

Psique e matéria são aspectos diferentes

de uma única e mesma coisa. (Denise Ramos)

  

O seu coração era o lugar onde o rio e as plantas, as árvores e o ar se podiam visitar, fundir, excitar-se mutuamente e celebrar festas de amor. (H. Hesse)

                                              

O trabalho com recursos expressivos pode ser comparado a um sonhar acordado, onde o real e o imaginário entrelaçam-se na criação de um mundo vivo e vivificante, que pulsa e respira através da relação profícua entre o eu e o outro.

 

A gestação de uma obra é como a interação com uma pessoa que desejamos conhecer. Iniciamos um diálogo com nossa criação ainda por nascer. Podemos fazer-lhe perguntas, e ela nos dará

 

(pg 220 do livro)

respostas inteligíveis./Como no amor, o compromisso com o ato criativo é o compromisso com o desconhecido - não apenas o desconhecido, mas o incognoscível. Esse desejo é mais do que alegria ou prazer, é o contato com o desconhecido. O Desejo faz a obra crescer fora de nós para poder se ver. Ultrapassamos os limites conhecidos do nosso ser para incorporar o Outro, para tocar, sentir, remoldar, rejuvenescer, criar uma vida nova... (Nachmanovitch, 1993, p. 152)

 

Assim como a arte, os mitos e contos de fadas podem ser vistos como formas de apreensão, organização e representação de vivências, propiciando a amplificação de temas importantes para o desenvolvimento individual e coletivo. Dentro dessa perspectiva, pode-se, através de uma pesquisa simbólica, fazer analogias entre eles e diversas fases  e momentos desse desenvolvimento, sem contudo perder de vista que cada conto, assim como cada obra de arte, por veicular forças que transcendem a consciência individual e o momento histórico em que foram criados, prestam-se a infinitas recriações e interpretações (sem que nenhuma esgote suas mensagens ou dê respostas definitivas às questões por eles propostas).

Pode-se perguntar as razões pelas quais a psicologia junguiana se interessa por mitos e contos de fadas. Dr Jung disse, certa vez, que é nos contos de fadas onde melhor se pode estudar a “anatomia comparada da psique” (von Franz, 1981)

 

 

O CALDEIRÃO DA BRUXA

 

A bruxa do conto “João e Maria” gostava de comer crianças, assim como o gigante de “João e o Pé de Feijão”. Até as mães mais carinhosas não resistem a dar mordidelas em seus corpos roliços e rechonchudos. Elas exalam um encanto e frescor de manhã nascente. Concretizam e tornam  incontestavelmente presente o mistério da transformação, tão próximas estão do caldeirão fervilhante de sementes que os psicólogos chamam de inconsciente  e que os religiosos chamam de reino divino.

Assamos e comemos nossas crianças quando, como gigantes insensíveis ou bruxas prepotentes, buscamos aplacar e abafar o apelo e a urgência de renovação. Melhor habitar territórios conhecidos a se aventurar por “mares nunca antes navegados”. Pelo menos é

 

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isso que fazemos quando instituímos, diante das diferenças, formas aculturadas de antropofagia (classes especiais, manicômios e todo tipo de mecanismos de exclusão). No entanto, é possível reverter esse processo e colocar o “caldeirão da bruxa” a serviço da criação de um espaço que seja propiciador e continente à emergência e elaboração das questões e necessidades de desenvolvimento e participação social dessas crianças.  É a isso que as oficinas de artes do CECCO se propunham.

O processo de constituição do grupo assemelha-se à construção de um vaso alquímico. Nele serão depositadas as expectativas, vivências e potencialidades de cada integrante. Mexemos e remexemos nessa grande panela, cuidando para que o fogo não se apague mas também não seja forte demais, respeitando o tempo e as singularidades de cada criança. Cada uma delas é como um João trazendo consigo suas sementes mágicas de feijão, só que aqui elas não são atiradas pela janela.

Em um dos grupos propus às crianças que plantassem algumas sementes de feijão. No início de cada oficina elas cuidavam da sua “semeadura” e faziam um desenho de como estavam, acompanhando o seu crescimento (depois disso faziam os outros trabalhos). As crianças notavam que algumas sementes germinavam rapidamente, outras despertavam de seu “sono” bem devagar. Algumas não respondiam ao chamado do vir-a-ser e simplesmente murchavam, encolhendo-se. Isso deflagrava no grupo discussões sobre como também, em nossas vidas, geramos expectativas que nem sempre encontram eco na realidade, como cada pessoa estabelece um ritmo próprio em sua caminhada pela existência, sobre nascer e morrer ou ainda sobre como cada um é igual e ao mesmo tempo diferente do outro. Depois as crianças pintaram vasos e neles plantaram seus pés de feijão.

No final do semestre, além dos trabalhos confeccionados, levaram para casa seus vasos e o livro que fizeram com os desenhos de suas sementes brotando e transformando-se em planta. A partir daí, cada criança pôde também apropriar-se um pouco mais de seu próprio processo de crescimento, dando continuidade e alimento para as descobertas e aquisições feitas durante as oficinas.

(pg 222 do livro)

Ao final desse processo é como se cada integrante retirasse da panela, em forma de alimento, transformado e acrescido de novos ingredientes advindos da troca com os outros participantes, o que trouxe para o grupo em estado germinal, potencial ou terminal (pois, de qualquer forma, morre a semente  para que a planta possa revelar-se:  às vezes morre a criança birrenta para renascer na que sabe o que quer, morre a criança “mal amada”,  que renasce na que consegue sentir amor próprio e sentir-se valorizada, morre o “patinho feio”, que renasce em cisne).

 

 

 

O PÉ DE FEIJÃO

 

 

... como acima dos deuses o Destino

é calmo e inexorável,

acima de nós mesmos construamos

um fado voluntário

que quando nos oprima nós sejamos

aquele que nos oprime,

e quando entremos pela noite dentro

por nosso pé entremos.

                          (Fernando Pessoa - Ricardo Reis)

 

 

O feijão exige ser trabalhado para ser elevado ao status de alimento. Para tanto precisa ser colhido, cozido, mastigado... Da mesma forma, as potencialidades não se transformam em recursos disponíveis para a consciência se não forem reconhecidas, atualizadas, vivenciadas e integradas numa prática contextualizada na relação intersubjetiva. E é isso que diferencia uma oficina nos moldes em que era feita no CECCO de uma simples atividade ou de uma aula. Não consistia num mero fazer ou fazer junto alguma coisa, mas em fazendo reconhecer a si e o outro no processo de construção do real, possibilitando a troca fecunda e a convivência enriquecedora e mutuamente fertilizadora  entre as diferenças (inclusive as significativas, susceptíveis de estigmatização, alienação e isolamento).

            O pé-de-feijão de João liga a terra ao céu, como um arco-íris que, ao ser percorrido, leva ao pote de ouro. Faz a ponte entre o

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real e o imaginário, possibilitando o resgate de tesouros usurpados pelo gigante (não disponibilizados). Em posse dos recursos que conquistou, João instrumentaliza-se para o enfrentamento das condições adversas de sua existência, recriando o seu mundo a partir de novas bases, de novos referenciais, resignificando sua própria história.

Numa oficina com pré-adolescentes (11 a 13 anos), a partir de suas colocações, trabalhei a questão da passagem da infância para a vida adulta. Inicialmente fizeram três desenhos: “eu ontem”, “eu hoje” e “eu amanhã”, aonde expressaram como se viam, se sentiam e o que desejavam para si.  Passado, presente e futuro ligados pelo fio do “eu sou, aqui e agora, tudo isso junto, junto com os outros”. Isso fez com que pudessem se perceber um pouco mais atuantes e responsivos com relação à construção e constituição de seu ser-no-mundo. Numa oficina posterior, prepararam uma festa de aniversário. Fizeram a massa e assaram um bolo, confeccionaram a toalha da mesa (com papel e colagens) e por fim comemoraram.

O aniversário instaura um novo ponto de partida. Semelhante às comemorações de Ano Novo, fecha-se uma etapa e abre-se um novo ciclo de vida (que se renova como Fênix renascida das cinzas).

Num outro encontro, esse grupo fez uma maquete sobre o tema “o mar”. Modelaram em argila um homem em seu barco e outro naufragado numa ilha, uma sereia, um tubarão e uma baleia, uma ostra com uma pérola, uma arca do tesouro. Dispuseram esses elementos num grande papel aonde pintaram o mar. A partir desse trabalho, criaram uma estória que falava sobre uma travessia pelo mar envolvendo riscos de naufrágio, de ser seduzido pelo canto da sereia ou de ser atacado pelos tubarões. Superadas as dificuldades e os revezes dessa empreitada, encontrava-se um tesouro. Em oficinas posteriores, fizeram maquetes individuais sobre a chegada à terra com o tesouro encontrado e colagens sobre  “o ouro” (o que queriam preservar ou conquistar para suas vidas) e “o lixo” (o que achavam que devia ser desprezado, abandonado ou transformado durante o processo de crescimento ).

O mar simboliza a dinâmica da vida. Tudo sai do mar e a ele retorna, tornando-se o mesmo lugar de nascimento, transformações

 

 

(pg 224 do livro)

 

 

e renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possíveis realidades ainda informais e as realidades formais, uma situação de ambivalência, que é a da incerteza, da dúvida e da indecisão que se pode concluir bem ou mal. Daí ser o mar simultaneamente a imagem da vida e da morte. Cretenses, gregos e romanos sacrificavam ao mar cavalos e touros, ambos símbolos de fecundidade. (Brandão, 1986).

 

Ao longo de todo o processo vivido por esses jovens nessas oficinas, eles puderam tornar visível e falar sobre como se sentiam com relação às transformações físicas e psíquicas pelas quais estavam passando e ao quanto isso os assustava e o que neles despertava. Puderam falar sobre suas vivências, sonhos, frustrações, desejos... e compartilhá-los, espelhar-se, diferenciar-se, enfim, exercitar-se no manejo do leme de suas vidas.

Havia entre os povos primitivos rituais de iniciação e passagem que facilitavam a canalização da energia psíquica em direção à instauração de novas formas de relacionamento eu-mundo (em diferentes fases e situações existenciais). Um desses rituais referia-se à passagem da infância para a vida adulta. Atualmente, há uma carência de espaços instituídos que dêem conta de propiciar a vivência e elaboração de questões inerentes ao crescimento humano. O envolvimento dos integrantes desse grupo com as propostas e atividades desenvolvidas ao longo das oficinas, a criação de vínculos e a pertinência das discussões desencadeadas tornou visível a necessidade atual de que sejam criados espaços desse tipo.

Subir e descer do pé-de-feijão, percorrer o arco-íris, navegar pelo mar e chegar à terra firme... são formas de relacionar realidade e fantasia na constituição de um mundo onde os sonhos também são alimento e os feijões também podem conter alguma parcela de magia. Isso desperta em nós a consciência de que os sonhos muitas vezes podem ser concretizados e a realidade sempre pode ser transformada em algum nível, o que resgata a própria dignidade e autonomia diante das circunstâncias originais da vida de cada um.

 

 

 

 

(pg 225 do livro)

 

 

A HARPA FALANTE

 

... Que quer a canção?

Erguer-se em arco sobre os abismos.

Que quer o homem?

Salvar-se, ao prêmio de uma canção.”

(C. Drummond de Andrade)

 

... E onde palavra e som se unem

Onde soa a canção e a arte desabrocha

Plasma-se a cada vez de novo o mundo,

De toda a existência o sentido,

E cada nova canção e cada livro

E cada quadro é uma revelação,

Uma nova centésima tentativa

De realizar a unidade da vida.”

(H. Hesse)

 

No conto, João só pôde cortar o pé-de-feijão estando em posse da harpa encantada, que com sua música poderá, dali para a frente, elevá-lo ao eterno reino das sementes, das potencialidades e dos deuses.

Nas culturas arcaicas, uma árvore, uma montanha ou uma pedra marcavam o centro do mundo. O simbolismo do centro relacionava-se com a possibilidade de comunicação entre os níveis ctônico, terrestre e celeste. Denotava o início da criação de uma casa, uma cidade e em escala macrocósmica, do mundo. Era considerado um ponto de ruptura que permitia ao homem tocar a esfera divina ou comunicar-se com os espíritos ancestrais. Muitas vezes, o centro representava um local aonde um monstro (Caos)  foi vencido e morto para que o Cosmo pudesse vir à existência, tornando-se realidade manifesta. (Eliade, s/d)

 

Cada nação, cada cidade, cada povo, cada casa, cada família e até mesmo cada homem tem o seu centro do mundo, seu  “ponto de vista”, o seu ponto imantado, que é concebido como o ponto de junção entre o desejo coletivo ou individual do homem e o poder

 

 

 

 

 

 

(pg 226 do livro)

sobrenatural de satisfazer a esse desejo, quer se trate de um desejo de saber ou um desejo de amar e agir. Lá onde se congregam esse desejo e esse poder, lá é o centro do mundo. Esta noção de centro está vinculada à idéia de canal de comunicação e é, por isso mesmo, que o centro é marcado por um pilar, uma árvore cósmica, uma pedra... (Brandão, 1987, p. 59).

 

 

O “axis mundi”, eixo de ligação entre o céu e a terra, foi integrado e incorporado na vida de João (do conto) através da música (harpa), através da arte. Dessa forma, seus sonhos ganham voz e podem se fazer presentes, passando a interferir no mundo. Nem só de pão vive o homem...

Através das linguagens artísticas, o espírito ganha corporeidade e a matéria plasticidade. O interno e o externo, o real e o imaginário, entrelaçam-se num movimento formador e transformador. Aí reside um dos principais fatores terapêuticos da arte: poder dar visibilidade às tramas que permeiam as relações e que se concretizam em comportamentos; poder, ainda, propor e criar novos paradigmas na medida em que formas cristalizadas e não satisfatórias de relacionamento eu-mundo podem ser conscientizadas, questionadas, revistas e transformadas através da vivência de novas possibilidades de ser.

O gigante, caindo por terra e morrendo, virou semente de uma nova etapa na vida de João, que irá desenrolar-se a partir de novos referenciais... 

 

 

D. E O PÉ DE FEIJÃO

(ou como D. resgatou seus tesouros das mãos do gigante)

 

 

Não escolhi o conto “João e o Pé-de-Feijão” como eixo para essas colocações por acaso. Ele foi trazido espontaneamente por uma criança (D.) numa oficina de artes (em que sugeri que os participantes escolhessem um conto de fadas para tema de suas modelagens em argila), abrindo a possibilidade de desmobilizar e desmontar, tanto interna quanto externamente, mecanismos de exclusão e estigmatização a que vinha sendo submetida.

D. veio para o CECCO através da solicitação de uma escola da região por um trabalho com crianças de sua classe especial. Algumas

 

 

(pg 227 do livro)

dessas crianças participaram, durante um semestre, de uma das oficinas de artes do CECCO, juntamente com outras vindas por procura espontânea e por outros encaminhamentos. Esse trabalho conjunto CECCO - escola incluía, além disso, reuniões de orientação com os professores, coordenadas por outra psicóloga e observações em sala de aula (feitas, nessa classe  especial, por uma terapeuta ocupacional).

Na primeira oficina de que participou, D. tentou desenhar uma figura humana, apagando-a em seguida. Depois, no mesmo papel, desenhou formas abstratas e fechadas: círculos, quadrados e triângulos, uns dentro dos outros, como que encapsulados.

O fato de D. apagar a figura humana é bastante significativo, pois mostrou o quanto era difícil para ele se colocar num mundo sentido como não acolhedor, já que não reconhecia suas necessidades e reais capacidades. Considerado deficiente mental pela escola, foi colocado nessa classe especial apenas a partir de uma indicação da professora, sem um laudo psicológico e sem ter tido a chance de participar por pelo menos dois anos de uma classe normal (o que lhe seria permitido por lei). Diante disso, D. recolheu-se, fechou-se (como se guardasse em seus bolsos suas sementes de feijão).

Em seu segundo trabalho, D. desenhou, com tinta amarela, uma casa e uma árvore. A cor amarela é expansiva, ela aproxima os objetos do observador. Pode-se perceber aí uma nova tentativa, por parte de D., de se mostrar. No entanto, num movimento de recuo, D. encobriu seus desenhos com uma tinta verde escuro. Na oficina seguinte, em que as crianças pintaram pedras, D. misturou cores e conseguiu fabricar tons belíssimos, que denotavam uma grande sensibilidade, pintando com eles suas pedras. Logo em seguida, D. pintou por cima desses tons com tinta vermelha.

Ao final das oficinas, cada criança mostrava e contava o que fez para o grupo. Nesse momento, era colocado para D. que ele tinha feito trabalhos bonitos e interessantes e apontado o fato de escondê-los. Em outra oficina, em que a proposta era trabalhar com argila, D. modelou um dinossauro. Pintou-o e mostrou-se muito feliz com o que tinha conseguido fazer. Daí em diante, D. cresceu no grupo,

(pg 228 do livro)

passando a se colocar mais e a ser mais participativo. É como se , nesse momento, D. tivesse saído do seu “encapsulamento”, subido no seu pé de feijão e resgatado seu “saco de dinheiro”, sua capacidade de troca significativa com o outro. A terapeuta ocupacional observou em sala de aula que, após esse dia, D. perguntou à professora como se escreve dinossauro, mostrando um maior interesse em descobrir (des - cobrir) coisas. 

Num trabalho com rabiscos, em que era pedido às crianças rabiscar com giz de cera, encontrar formas nos rabiscos e desenhá-las em outro papel, D. encontrou e fez uma casa em vermelho, cor ligada à afetividade e à autoconfiança, como se agora pudesse ter um lugar no mundo e habitá-lo. No entanto, a casa aparece engradada (na parte onde as crianças costumam desenhar uma janela), com exceção da porta, que se encontra porém num nível um pouco acima do solo. D. precisava fazer a ponte entre o dentro e o fora (e mais uma vez precisará subir no seu pé de feijão).

No momento em que foi proposto para o grupo escolher um conto de fadas como tema para modelagem, D. sugeriu e contou, com todos os detalhes, a estória de João e o Pé de Feijão, modelando em seguida o castelo do gigante. Diante desse fato, foi mostrado à coordenadora de sua escola que D. não era um deficiente mental, pois suas produções nas oficinas desmontavam esse pseudo-diagnóstico, e a escola então se comprometeu a reinseri-lo numa classe normal no próximo ano (o que efetivamente foi feito). Com isso, D. como que resgatou sua galinha dos ovos de ouro, a possibilidade de ser reconhecido e participar ativamente de seu processo de crescimento.

Numa oficina em que as crianças fizeram uma maquete coletiva sobre o tema “fazenda”, D. fez (com bambus) e pintou uma árvore, e no encerramento do semestre D. desenhou uma casa contendo janela, porta (abertura) e chaminé (calor, vida), um sol (propiciador do desenvolvimento), uma  árvore (crescimento, integração), flores (amigos, alegria, afetividade), um carro (direcionamento e possibilidade de ganhar autonomia), chão de terra (assentamento e contato com a realidade) e um prédio (construção de conhecimento). Parece que D. também conseguiu recuperar sua “harpa encantada”

 

(pg 229 do livro)

das mãos do gigante que, caindo por terra, transformou-se em semente de uma nova etapa de seu desenvolvimento psíquico e cognitivo.

Essas oficinas representaram para as crianças dessa classe a oportunidade de resgate de uma auto-imagem como a de alguém capaz de conhecer e interagir com o mundo à sua volta de uma maneira significativa, como alguém que tem coisas importantes a dizer e mostrar sobre si próprio, suas vivências e seu ambiente. Também trouxe elementos para que as pessoas envolvidas em seu processo educacional e socializatório pudessem vê-las de outra forma, reconhecendo suas capacidades e necessidades de desenvolvimento. Isso fez com que as relações criança-escola sofressem mudanças.

 

Os desejos podem ser comparados a sementes que o inconsciente dirige à consciência. A consciência só poderá ampliar-se mediante um acréscimo de energia (conquista de tesouros). Lançar as sementes à terra, da mesma forma que trabalhar artisticamente um conteúdo, representa a possibilidade de atualização do potencial criativo dessas sementes.

O pé-de-feijão simboliza um “axis- mundi” através do qual João traz para casa suas riquezas e as disponibiliza para o enfrentamento do mundo. À subida em direção ao significado, ao reino das potencialidades (inconsciente), corresponde uma descida em direção à sua integração na esfera consciente e à experiência concreta. Ficar no reino das fadas, que é bastante sedutor devido à sua numinosidade, corresponderia a uma inflação. Por outro lado, o caminho de volta completa um percurso em que é restituído algo necessário à equilibração psíquica e à recuperação da fertilidade nas relações.

 

Um habitante do Cairo sonha que uma voz lhe diz, em sonhos, para ir à cidade de Isfajã, na Pérsia, onde encontrará um tesouro. Ele enfrenta a longa e perigosa viagem até Isfajã, onde chega esgotado e se deita no pátio de uma mesquita, para descansar. Não sabe que está no meio de ladrões. Mais tarde, são todos presos. O egípcio lhe conta sua estória. O cádi tem um ataque de riso e responde: “Homem ingênuo e sem juízo, por três vezes sonhei com uma casa no Cairo; ao fundo há um jardim e, no jardim, um relógio de sol, além de uma fonte e uma figueira; sob a fonte há um tesouro escondido; jamais acreditei nessa mentira;. Não apareça mais em

(pg 230 do livro)

Isfajã. Tome esta moeda e vá embora”. O outro voltou ao Cairo. Tinha reconhecido sua própria casa, no sonho do cádi. Ao chegar, estava embaixo da fonte e encontra o tesouro.  (Jorge Luis Borges, in Freitas, 1987)

 

 

 

E O GIGANTE CAIU POR TERRA...

 

O trabalho realizado com a classe especial que D. freqüentava e com essa escola não promoveu transformações significativas apenas na vida de D.. A partir dessas oficinas e das questões trabalhadas com a direção da escola, outras crianças dessa mesma classe também tiveram a oportunidade de serem vistas com outros olhos e de serem reinseridas no processo educacional normal. A escola pôde ainda rever seus parâmetros de inclusão/exclusão, o que fez com que fatores institucionais e burocráticos que intervinham nessa questão fossem reavaliados e recolocados (por exemplo, havia alunos que estavam nessa classe especial unicamente por indisciplina, outros para que essa classe tivesse o número mínimo de alunos para que não fosse fechada ou para que a professora não precisasse ser transferida para outra escola, etc.)

 

Sentados à beira do rio, dois pescadores seguram suas varas à espera de um peixe. De repente, gritos de crianças trincam o silêncio. Assustam-se. Olham para a frente, olham para trás. Nada. Os berros continuam e vêm de onde menos esperam. A correnteza trazia duas crianças, pedindo socorro. Os pescadores pulam na água. Mal conseguem salvá-las com muito esforço, eles ouvem mais berros e notam mais quatro crianças debatendo-se na água. Dessa vez, oito seres vindo correnteza abaixo.

 

Um dos pescadores vira as costas ao rio e começa a ir embora. O amigo exclama:

-Você está louco, não vai me ajudar?

Sem deter o passo ele responde:

-Faça o que puder. Vou tentar descobrir quem está jogando as crianças no rio.” (antiga lenda indiana, G. Dimenstein, in Amigo Milton Nascimento [CD]).

 

 

 

 

 

 

(pg 231 do livro)

 

No caso de D. e dessa escola, parece que conseguimos, com o trabalho de equipe do CECCO, tanto salvar crianças que estavam sendo jogadas ao rio como deter (pelo menos até onde pudemos acompanhar) esse processo (atuar com quem estava fazendo isso). No entanto, não param de aparecer crianças lançadas à correnteza...

Um gigante caiu por terra, mas muitos outros continuam comendo e pisoteando, com seus pés pesados e insensíveis, as nossas crianças.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(pg 232 do livro)

 

 

                                            REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

ANDRDADE, C.D. Antologia Poética. RJ: José Olympio, 1977.

 

BERNARDO, P.P. O Processo Criativo como Veículo de Transmutação do Arco-Íris em Ponte-Mandala (A Utilização de Recursos Artísticos no Trabalho Terapêutico). Dissertação de Mestrado, SP, 1994, PUC.

 

BYINGTON, C. Dimensões Simbólicas da Personalidade. SP:  Ática, 1988.

 

BRANDÃO, J.S. Mitologia Grega, vol. I e II. Petrópolis: Vozes, 1986, 1987.

 

EDINGER, E.F. Ego e Arquétipo. SP: Cultrix, 1989.

 

ELIADE, M. O Sagrado e o Profano. Lisboa, Livros do Brasil, s/d.

 

FRANZ, M.-L.von  A Interpretação dos Contos de Fadas. RJ: Achiamé, 1981.

 

FREITAS, L.V. A Psicoterapia como um Rito de Iniciação - Estudo sobre o Campo Simbólico através de Sonhos Relatados no Self Terapêutico. Dissertação de Mestrado, SP, 1987, IPUSP.

 

HESSE, H. Transformações. RJ: Record, s/d.

 

JUNG, C.G. A Prática da Psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1981.

 

NEUMANN, E. História da Origem da Consciência. SP: Cultrix, 1990.

 

NACHMANOVITCH, S. Ser Criativo. SP: Summus, 1993.

 

OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes, 1978.

 

PESSOA, F. Ficções do Interlúdio / 2-3. RJ: Nova Aguilar, 1976.

 

RAMOS, D.G. A Psique do Corpo. SP: Summus, 1994.

 

TRINCA, W. A Etérea Leveza da Experiência. SP: Siciliano, 1991.

 

 

 

 

 

      

 

 

  

 

 



[1] Esse texto encontra-se no livro: Tecendo a Rede: Trajetórias da Saúde Mental em São Paulo (1999), SP: Cabral Ed., e np site: www.patriciapinna.psc.br

 

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