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“Ursprungsklärung: Arte & Pessoa na comunicação das culturas” Prof. Dr. Marcos Ferreira
Santos,
Uma presença humana nos diz Gusdorf. Qual seria a motivação última desta exigência que coloca em questão a presença humana para alunos e professores atentos? Se o sentido comum das palavras não é suficiente na rotina metodológica e didática das servidões escolares, nos defrontamos com o imperativo metafísico de um “para além do sentido usual”, de um meta-phoros: metáfora. Então, a linguagem já não diz. A imagem já não é suficiente. O movimento já não nos mobiliza... Estranho momento de comunicação - posto que sempre será comunicação - numa situação-limite, como nos ensina Karl Jaspers, uma Grentzsituation. O limite, portanto, de meu Ser é o Outro no mundo concreto; linha limítrofe que se funde em minha constituição e só posso
Ser na medida que sou com o Outro no mundo: “o outro é uma forma empírica de atolamento no Ser...” (Merleau-Ponty, 1992:76). A alteridade aparece, assim, estruturalmente, como membrura, membrana e juntura, como traço constitutivo de minha pessoa: sentimento trágico da tensão entre a facticidade do mundo (seu caráter duro, opaco e resistente) e a possibilidade de transcendência do humano (suas pulsões e subjetividade), marcando a construção da pessoa como “prósopon” (prosopon), (aquele que afronta, que afirma sua presença) no campo de forças da experiência do mundo e da reflexão sobre estas experiências. Ao mesmo tempo, de maneira antagônica e complementar, a alteridade faz parte de meu processo identitário. No entanto, a situação-limite é, precisamente, a co-existência destas duas possibilidades: o Outro pode ser alter, mas também pode ser alienus:
Se partimos, doravante, de uma noção tensional da construção da pessoa onde o Outro e o mundo são elementos constitutivos mediados pela corporeidade, assim como na tradição da Antropologia Filosófica Personalista trilhada por Nikolay Berdyaev, Emmanuel Mounier e Paul Ricouer, entre outros; podemos também estabelecer, sem maiores riscos de ampliar indevidamente nossas reflexões, que uma metáfora exemplar da pessoa está, exatamente, na Arte (Ferreira Santos, 1999), como arte em obra que, ao contrário da concepção eurocêntrica e renascentista de “obra de arte”, não é nunca um objeto concluso. Está sempre em processo, em percurso, em constituição pois, muito além de seu presumível autor, necessita do outro contemplativo em plena fruição da experiência estética, ampliando seu potencial polissêmico, re-significando a própria obra, sendo, em última instância, seu co-autor. Assim como, também, dependendo do locus onde ocorra a fruição (galeria, museu, casa, praça, rua, estação do metrô, etc) assume outros vetores de significação (valor de mercado, objeto fúnebre de um tempo mortal, extensão da identidade, ornamento público, objeto cotidiano, enigma em trânsito, etc).
Mas, a “entrada em circuito” de nossa epígrafe gusdorfiana evidencia uma outra dimensão em que Arte & Pessoa metabolizam os vetores de outros campos de força para que possam circular entre alunos e professores atentos os valores permanentes da pessoa e da criação (poiésis), perambular entre eles os valores culturais de outros sonhos a constituir uma “proposta pessoal”, um pro-jectum - lançar-se à frente para cumprir seu próprio destino existencial sem nenhuma outra garantia a não ser a de que a contingência das circunstâncias não deixarão de permear a trajetória. Novamente, a linguagem já não diz. A imagem já não é suficiente. O movimento já não nos mobiliza. Entretanto, o silêncio tudo canta, o branco tudo mostra, o repouso nos lança ao âmago da existência:
Talvez, a motivação última desta exigência gusdorfiana de que estamos tratando esteja imiscuída neste outro imperativo existencial merleau-pontyano: “ser sensível a esses fios de silêncio com os quais o tecido da palavra está misturado”. Silêncio que acompanha a palavra, branco que acompanha o pictórico, repouso que acompanha o movimento. Mas, não seriam estes paradoxos impenetráveis a um cogito reflexivo aristotélico e cartesiano? A um pensamento de sobrevôo que se recusa a habitar as coisas próprias? Então, somos convidados a adentrar e a adensar o núcleo dissipativo da experiência estética. Uma outra porta de entrada? Uma outra forma de peregrinar pelas dúvidas? Uma outra forma de habitar o coração da substância artística? Outro Orpheu linguajeiro, outro Tyrésias vidente, outro Hermes andarilho?
Merleau-Ponty em sua obra inacabada chamada “O Visível e o Invisível” (1964), nome coerente para quem inicia tentando estabelecer “As Estruturas do Comportamento” (1942) como formas de estabelecimento de sentidos e significados e a definir uma “Fenomenologia da Percepção” (1945) que, gradativamente, se confunde com a própria consciência; se aproxima de sua busca fundamental que é a do ser selvagem:
A investigação deste Ser em verticalidade (portanto, ultrapassamento da descrição da superfície como a epoké fenomenológica para o mergulho da compreensão hermenêutica em profundidade) que se estende ao passado, à arché primordial, tenta aproximar-se daquilo que antecede o cogito reflexivo. Tenta caracterizar o universo perceptivo do humano que, sensível, se dá muito antes do crivo intelectual do pensamento que pensa a si mesmo: reflexão-reflexo. Reino de Echo: reflexo reverberante do som linguajeiro; de Narciso: reflexo superficial da imagem; de Zéfiro: reflexo de movimento no empuxo das brisas raptoras...
Dizia Paulo Leminski, nosso poeta aprendiz de Ovídio em Metaformose, cambiando formas, que “a fábula é o desabrochar da estrutura, arquétipo em flor” (Leminski, 1998:10). Ali ele re-escreve de maneira arquetipal para nossos intentos:
Esta arché primordial, “afundar num coral de sereias” (no seu sentido topológico e não orfeônico), em seu substrato antropológico último, é de natureza mythica: “introduz-se o ser selvagem ou bruto - ultrapassa-se o tempo serial, o dos ‘atos’ e das decisões - reintroduz-se o tempo mítico - coloca-se o problema da relação entre racionalidade e função simbólica.” (Merleau-Ponty, 1992:166). Quase que como panfleto programático, Merleau-Ponty se propunha, em suas notas de trabalho, avançar a análise fenomenológica até este substrato do ser selvagem pré-reflexivo: o mytho e o imaginário: “compreender o sonho a partir do corpo (...) compreender o imaginário pelo imaginário do corpo - o que resta do quiasma no sonho?” (Merleau-Ponty, 1992:236). Quiasma aqui entendido como o embricamento das corporeidades: meu corpo, corpo do outro, corpo do mundo: uma filosofia da carne no entrecruzamento das avenidas (p.157). Pena que o filósofo engajado tivesse que coxear com a morte prematura. É verdade que a mão de Merleau-Ponty hesitou...
Mas, o que teríamos a aprender com a perplexidade que se instala ao verificarmos que a base da “realidade” é o quiasma, que a base da razão é mythica, que a base significante da palavra está no silêncio, que a base pictórico-visual está no branco que o consome, que a possibilidade mesma do movimento está no repouso? Além de nos apercebermos da importância capital da corporeidade nestas relações (fé perceptiva, audição, visão, cinestesia etc...) e que cada estrutura perceptiva possibilita uma modalidade de ser: o ser visual, o ser auditivo, o ser ágil; que unidade poderíamos tentar atingir pela convergência destas modalidades possíveis? Sem pretendermos aventar respostas ligeiras, mas inquietar a busca constante, será que o ser selvagem de que fala Merleau-Ponty não seria uma forma de auscultar o Outro e o mundo através da membrana que nos separa e nos junta? “Seria preciso retornar a esta idéia da proximidade pela distância, da intuição como auscultação ou palpação em espessura, de uma vista que é vista de si, torção de si sobre si e que põe em causa a ‘coincidência’. Este é o caminho pelo qual se veria, enfim, o que seja a interrogação filosófica.” (Merleau-Ponty, 1992:125). Ou ainda, para aqueles que, prontamente, nos objetariam a imaginação excessiva na análise, acompanharíamos o sorriso de Bachelard no entrementes da divisa fenomenológica e epistemológica desta breve citação: “a linguagem está sempre um pouco à frente do nosso pensamento (...) É a bela função da imprudência humana, a jactância dinamogênica da vontade (...) É preciso que a imaginação tome muito para que o pensamento tenha o bastante. É preciso que a vontade imagine muito para realizar o bastante.” (Bachelard, 1990:262).
Lumina profundis no crepúsculo selvagem das origens (Ursprungs)...
Este ser selvagem nos parece ser, propriamente, aquele que mobiliza e é mobilizado em sua metáfora por excelência: a Arte. Parece ser aquele que silencia e fala, que deixa aparecer e desaparece; que, fugaz, repousa na origem de tudo. Merleau-Ponty nos diria, neste sentido, que: “a comunicação de uma cultura constituída com outra se faz por meio da região selvagem onde todas nasceram (...) é preciso uma Ursprungsklärung.” (Merleau-Ponty, 1992:164). Uma iluminação desta região selvagem originária pressupõe clarear o caminho somente o suficiente, somente como o olhar (lumina, em latim) que avança cotejando as penumbras e luscos-fuscos da peregrinação na profundidade dos significados. Não se trata da enciclopedista ilustração (Aufklärung) que cega de tanta luz, de tanta fé na razão, na ciência e na república. Aqui são divagações que tateiam o sensível, a compreensão e o jardim epicurista (képos) dos amigos na interrogação cotidiana dos sentidos da existência, na ajuda mútua comunal das pessoas em pequenos feitos. Nem se trata mais da salvação do mundo por bandeiras tremulantes de qualquer que seja o credo (marxista, neo-liberal ou fundamentalista), sempre prestes a eliminá-lo no desejo mesmo de salvá-lo. Mas, lumina profundis, olhar o mundo desde o subterrâneo num conhecimento crepuscular (Durand, 1995:83; Ferreira Santos, 1998). Silenciar ante os trovões. Caminhar lento na tempestade. Esta região selvagem originária (Ursprungs), campo de forças da criação, se inscreve na corporeidade do Ser. É em meio à corrente sangüínea, na tensão da tessitura muscular, na anatomia líqüida dos hormônios, na sístole/diástole cardíaca, na combustão pulmonar, na ascensão postural, no recolhimento fetal, na cópula e no ritmo equilibrante dos passos que engendramos nossos arquétipos em flor. É a partir de schèmes corporais que geramos nossas imagens arquetípicas (Durand, 1981). Neste sentido é que podemos dizer que a imagem se inscreve no corpo e é sua própria escritura (fig. 01). Ou ainda que: “trata-se deste logos que se pronuncia silenciosamente em cada coisa sensível, enquanto ela varia à volta de certo tipo de mensagem, de que só podemos ter idéia através de nossa participação carnal no seu sentido, esposando com o corpo a sua maneira de ‘significar’, - ou deste logos proferido, cuja estrutura interna sublima a relação carnal com o mundo.” (Merleau-Ponty, 1992:194-195).
Da relação carnal com o mundo, a partir dos schèmes corporais, temos a imagem arquetípica. A partir das imagens arquetípicas estabelecemos dois caminhos diferentes: um caminho é aquele que cumpre a função cognitiva da imagem transformando seu aspecto exterior em representação. Como representação, serve ao aparelho cognitivo e conceitual possibilitando a estruturação racionalizante dos conceitos e idéias. Consubstancia o ideário e a ideologia como constructos reflexionantes, guardando apenas traços arquetípicos latentes (residuais) que exigem um verdadeiro trabalho arqueológico para caracterizá-los. O outro caminho concomitante é o que faz com que a imagem arquetípica se integre na sintaxe de uma narrativa pela força criadora (poiésis) do mytho (processo de mythopoiésis). Salvaguardado como narrativa dinâmica de símbolos e imagens, o mytho é, por sua vez, aquilo que Durand chama de compleição do aparelho simbólico, a matriz criadora das tradições culturais nas suas mais diferentes e coloridas manifestações. Roupagens variadas para uma invariância arquetipal. Neste intercruzamento que se dá na própria corporeidade é que vemos a possibilidade do diálogo entre culturas diferentes no contato inter-cultural. Respeitando cada configuração que se estabelece a partir destes dois trajetos, exatamente, na compreensão de sua matriz fundadora. O desafio parece ser o de entender a diferença como gesticulação cultural de uma mesma base originária (ursprungs). Para tanto, a necessidade ética de uma abertura (offenheit) permanente na “zona em que a ideação e a imagética permutam infindavelmente suas ações”. Este campo de forças é que propicia identidades e diferenciações neste intercâmbio incessante:
A reversibilidade deste olho tateante que nos vê, deste silêncio que nos diz, deste movimento que nos detém está também incrustada na obra estética. Estesia que nos possibilita o exercício nem etnocêntrico, nem relativista, mas inter-cultural. Vejamos um exemplo um pouco mais concreto para nossas reflexões sobre esta região selvagem de comunicação entre as culturas que acompanham a construção da pessoa e, por extensão, também das Artes. A despeito de minha predileção pelo surrealismo nas artes plásticas como investigação estética do mundo onírico e do inconsciente, René Magritte (1896-1967), pintor belga surrealista, continua impactando nossas experiências estéticas com a capacidade que tem de tornar insólita a reconstrução do mais banal cotidiano. Neste sentido, da sua fase mais “impressionista” em que busca elementos técnicos e mesmo clássicos para tornar ainda mais verossímil a reconstrução onírica, nos deteremos no quadro ”Império das Luzes” (1954).
Um chateau reflete sua fachada num pequeno lago. Duas janelas abertas no andar superior deixam entrever a luminosidade tênue de lâmpadas acesas. De um lado um pequeno portão branco fechado. De outro lado, um muro de largura volumosa deixa aberta uma passagem pela lateral do chateau. A lâmpada de um poste no centro do quadro emite uma luz forte iluminando a parte de baixo da fachada e se destaca no reflexo da água de um pequeno lago particular. Uma árvore à frente do chateau se ergue verticalmente em ascensão re-ligando dois ambientes antagônicos que, somente num momento posterior, conseguimos nos dar conta: o plano inferior do quadro em fortes contrastes de luz e sombra se dá sob o domínio de um registro noturno. É noite densa que se mescla com a massa vegetal; já o plano superior do quadro se dá num registro diurno. A luminosidade azul do dia (sem sol visível) flerta com o branco das nuvens em movimento, acentuando ainda mais o contraste entre os dois domínios. Este azul é um Urphânomen - um fenômeno primordial, como atestaria Goethe: “O azul do céu nos manifesta a lei fundamental da cromática. Não se busca nada por detrás dos fenômenos: eles próprios são a lição”... Complementaria Bachelard: “o céu azul é minha miragem” (1990:177). Ao mesmo tempo, a junção destes contrários na paisagem insólita nos fornece um momento sublime de “presentificação do impresentificável”, diria Lyotard (1988). Vagando com nosso olhar (lumina profundis), de maneira mais lenta, percebemos que o poste é isomorfo da árvore, os dois apresentam a mesma forma verticalizante, porém o poste é miniaturizado, como um duplo menor da árvore. Se de um lado, a árvore é negra e densa se projetando acima e tornando-se mais alta que o chateau , o poste de luz irradia sua luminosidade apenas na parte inferior da fachada do chateau. A parte superior que fica na penumbra, limitada pela própria lâmpada do poste, aparece como sombra da copa da árvore crepuscular: “Essa calota de nuvens, o sonhador a viu formar-se na terra. É a coluna de fumaça de sua lareira ao entardecer. Ela se esmaga e se estende contra a abóbada do céu, negra folhagem da árvore crepuscular.” (Bachelard, 1990:223). Não apenas a árvore e o poste de luz são isomorfos, mas também a coluna direita do chateau que possui um sótão. São três eixos (axis mundi) paralelos apontando para o alto: o silêncio da árvore que não diz, o branco do poste que não vê, e o repouso da casa que não anda. O pequeno lago à frente do chateau tem a superfície encrispada por um vento furtivo. Esta superfície nos lembra um dos trechos capitais de Emmanuel Mounier, onde sua carga poética se põe na pena do filósofo-poeta no crepúsculo tanto matinal como vespertino:
Como não perceber nesta poética passagem, o devaneio de uma imaginação material como Bachelard (1989) nos ensina, percebendo sair da matéria densa e escura dos rochedos como aço guardando a noite que se agarra, o poente aveludado e morno. Não é a chama tênue uma das imagens características de uma sensibilidade dramática pois que, não consome, mas aquece? E de onde se prefigura da torrente rouca do fundo, a fina pele de um olho úmido. Não se trata do olho luminoso nem o metal duro do heróico, nem do olho negro e narcísico espelho do místico, mas sim uma face viva e a fina pele (liminal) de um olho úmido das águas primordiais: ao mesmo tempo nascimento e morte. Narciso tem seu reflexo encrispado, a imagem já não é suficiente. Echo pronuncia seu nome, mas o vento furtivo (Zéfiro talvez?) desloca a voz e a palavra já não diz. O chateau é o mesmo, a árvore é a mesma, o lago é o mesmo e já não há movimento. Dizia Leminski: “água na água, como a luz na luz, luz dentro da água” (1998:15). Esta pele fina de um olho úmido no lago do chateau é, precisamente, a lumina profundis, o olhar profundo que perscruta a região selvagem de onde tudo emerge: o silêncio, o branco, o repouso. Em Magritte, a matéria densa e escura dos rochedos como muralha de aço guardando a noite que se agarra, está na massa densa e vegetal das árvores onde a noite, igualmente, se agarra. O poente aveludado e morno, aqui se projeta acima do chateau na massa clara e límpida de um azul tranqüilo que acompanha a procissão das nuvens no cortejo diurno. A imagem exala o frescor do hálito úmido da noite ao mesmo tempo em que a certeza luminosamente azul do dia guarda em seu colo a noite de um sonhador ou leitor solitários:
A luz tênue crepuscular, o outro poente aveludado e morno, que se entrevê na janela boquiaberta, quase que sonolenta bocejando devaneios, é de outra ordem. Ela foge do combate entre a esperança clara e o negrume, flertando com ambos a aurora. As janelas são do andar de cima do chateau: região mais alta da casa é aquela que prepara o vôo dos devaneios. Não se trata do porão das lembranças e cheiros, mas da região intermediária entre o chão e o céu atravessada pela árvore crepuscular que teima em re-ligar. Neste império das luzes, há matizes e feixes de luz diferenciados que compõem a paisagem insólita. Pela janela devaneamos com e como o sonhador/leitor que lá dentro está. Solidão presumida de um leitor/sonhador que invadimos com nosso lumina profundis. Ou será um escritor tentando capturar a palavra para o sentido que busca há sua vida inteira? Ou será um pintor que, recolhido em seu studium, brinca de esconde-esconde com as imagens que o olham através da tela branca e resistente aos traços e pinceladas? Ou será ainda um sonolento peregrino que aguarda seu cansaço trazer-lhe o sono em meio à diáfana luminosidade morna? A imaginação provocada pela imagem mobilizadora, polissêmica e multicolorida se arborece...
As significações que brotam desta região selvagem, em virtude da pregnância de traços mythicos ancorados na imagem arquetípica (a palavra feliz), dispensam tradutores. O excedente de significados graças ao conluio da força e do vigor da imagem é que educam a sensibilidade, refinando-a para captar seus movimentos mais sutis, suas verdades quase-audíveis, o invisível das formas profundas na cerzidura de nossa percepção. Saindo da terra de Magritte, viajando para o outro lado do Atlântico, podemos verificar a pregnância destas mesmas imagens numa canção do músico chileno, poeta, ator, bailarino, líder socialista, Victor Jara, chamada “Pimiento”. Vítima do sangrento golpe militar arquitetado pelo General Augusto Pinochet em 11 de setembro de 1973, sua produção artístico-musical é muito mais ampla que o rótulo, geralmente, lhe atribuído de “canción de protesta”. Um desses exemplos, a tonada-kaluyo (híbrido de dois ritmos folklóricos da região andina), Pimiento, trata da árvore plena de vermelho que habita o deserto de Atacama, norte do Chile. Uma das regiões mais áridas do mundo, reserva exuberâncias que só uma sensibilidade generosa pode nos dar sob a forma musical:
Entre a primeira parte da tonada e sua segunda parte, há um interlúdio do arranjo instrumental feito com instrumentos folklóricos da região andina. Neste interlúdio, a percussão seca e ressonante com o couro e aro do bombo legüero e outras madeiras nos ajudam a construir a imagem do trabalho das raízes sob o solo arenoso do deserto em busca de água. A utilização da flauta de caña chamada quena com pequenas e curtas frases melódicas ao fundo da percussão, reafirmam o enraizamento. Golpes de língua em viento, com a mesma quena, nos dão a impressão do frêmito do vento sob a lua. Arpejos de charango, pontuam aqui e ali a retomada da tonada, com rasguidos crescentes que vão incendiando o leit motiv da canção e, desta feita, fechando o ciclo diuturno, advém o retorno. O pimiento é aqui a árvore vermelha que se contrapõe ao árido amarelo-pálido do deserto de Atacama, de sol e vento. O brotar das ramagens do pimiento são, para o poeta, o canto do vermelho que se espalha, “canto rojo que derrama rojo entero”. Ou ainda, não esquecendo de Leminski, “um ruído de púrpura que se rasga” (1998:15). É um vermelho inteiro, ao mesmo tempo, intenso e que consome o olhar... um incêndio. Aliado ao fato de ser o lugar mais árido do planeta, seu calor se concentra no pimiento, prestes a qualquer momento, florescer... isto é, incendiar-se. De outro lado, outro par se constitui para vigiar o pimiento: lua e vento. Ânima noturna que se espraia sobre Atacama e o converte no lugar mais frio. Mesmo assim, ninguém o vê trabalhar, “noche y dia”, buscando seu alimento: é a prolongação constante da cabeleireira das raízes em busca de seu alimento. Movimento subterrâneo de romper a terra, contornar pedras, guiando-se pela tênue umidade sob o solo arenoso. Trabalho constante para garantir o incêndio no canto de suas ramagens, brotar o vermelho todo seu, todo inteiro. “Um certo azul do mar tão azul que somente o sangue é mais vermelho”, dizia Claudel na citação que utilizamos há pouco. Me parece que este vermelho todo inteiro do pimiento de Victor Jara é um contraponto simbólico-cromático do azul intenso de Magritte no Império das Luzes. Nas duas obras a árvore é o elemento mediador dos domínios diurno e noturno que nos possibilita colocá-los em comunicação, na iluminação tênue da Ursprungs - região primordial - pelo olhar em profundidade (lumina profundis). Não seria casual o fato de que a árvore é símbolo da ancestralidade do próprio ser humano? Como diria Bachelard, não é, exatamente, a árvore o nosso eixo verticalizante dos valores? A nutridora do sal e da água da terra pelo trabalho das raízes em diáspora? A sombra refrescante de uma copa que, se “benevolente for o destino”, nos dará folhas, flores e frutos na arborescência da cultura?
O lumina profundis, neste sentido, é voyeur... busca o prazer dos sentidos que estão urdidos na trama da imagem - olhar herdeiro do cordão umbilical; é flâneur, como o andarilho benjaminiano pelas galerias a perscrutar a vida em seu próprio cotidiano, no terreno da cultura. O olhar em profundidade dialoga com a pintura ou imagem que, como textura do Ser:
Deixamos a visão profana das pontuações e cesuras das mensagens sensoriais que ela habita para pervagar na região selvagem (Ursprungs) que nos dá a textura do Ser: sua carne. Será, portanto, através da carne que podemos por em comunicação culturas diferentes. Será através da carne que a palavra não conseguirá dizer, que a imagem não conseguirá se pintar, que o movimento não conseguirá mobilizar. Mas, é este chiasma da minha carne, do outro e carne do mundo que o silêncio, o branco e o repouso encontram. Assim posto, no estranhamento da iluminação da região selvagem (ursprungsklärung) - de arcabouço mythico - pelo olhar em profundidade (lumina profundis), nos possibilita por em comunicação as mais diferentes culturas pelo fato de ambas, Arte & Pessoa, se traduzirem como faces espelhadas de uma mesma construção: a relação de minha carne com a carne do mundo. É nesta filosofia da carne como região selvagem que a comunicação das culturas se estabelece para além das servidões escolares, entre as construções da Arte espelhando as da Pessoa:
É esta diferença a dialogar quando entra em circuito que se põe em causa a presença humana de nossa epígrafe gusdorfiana. Finalizando, este olhar de Narciso que cai ná água como Ícaro das alturas e afunda num coral de sereias (Leminski, 1998:15), retomaríamos Gilbert Durand em A Fé do Sapateiro: “ao homem do século XX, que vive numa sociedade industrializada, é permitida uma experiência simbólica autêntica (...) consentir na prenhez simbólica e recusar uma pedagogia totalitária do tempo mecanicista (...) E isto constitui a revolução profunda do nosso tempo. Marcuse, embora ainda atolado em muitas premissas do cientifismo do século passado, entreviu que a salvação - qualquer que seja - passava pela destruição do unidimensional. Passava pelo que tantas vezes reivindicamos em termos weberianos, o ‘politeísmo’ dos valores e dos caminhos do destino. Porque o totalitarismo que não cessamos de denunciar não passa do encerramento em um monoteísmo fanático, tão afastado do pluralismo trinitário, angelológico e hagiográfico dos cristãos, e que leva fatalmente à doutrina do Führerprinzip! Vemos assim que longe de ser um apelo à passividade contemplativa, a experiência simbólica se arma com todas as suas faculdades ‘de inteligência ativa’ contra as tentações do imobilismo e passividade proposta pelo século e suas pedagogias.” (Durand, 1995:50-51). “É tão estranho Renato Russo, 1993)
Artigo dedicado à memória luminosa
de
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Bibliografia:
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