Dados para citação de trechos desse texto:

Nas referências bibliográficas deve ser colocado:

BERNARDO, P. P. A Mitologia Criativa e o Olhar: Dando Corpo e Voz aos Diferentes Aspectos do Ser (p. 121 a 145), in: ARCURI, I. (org) Arteterapia de Corpo e Alma. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

Nas citações copiadas: por exemplo: “...quando nos disponibilizamos à abertura ao novo, exercendo o nosso potencial criador, passamos a perceber cada fato que nos afete como matéria prima para o nosso crescimento e auto-conhecimento.” (Bernardo, 2004, p. 121).

Ou, quando a citação não é copiada, mas escrita com suas próprias palavras: Segundo Bernardo (2004), cada fato que nos acontece pode trazer dados importantes para o nosso auto-conhecimento, promovendo o nosso auto-conhecimento.

(pg. 121 do livro)

A Mitologia Criativa e o Olhar

dando corpo e voz aos diferentes aspectos do ser

Autora: Patrícia Pinna Bernardo

 

“Este mundo, segundo se diz, é como uma teia de pérolas, arranjadas de tal forma que se olhando uma delas, vê-se todas as outras nela refletidas.”

(Sutra Hindu)

 

            Gombrich (1985) nos conta que, para fabricar sua pérola, a ostra precisa de uma lasca, de um grão de areia, sem o que ela crescerá como massa informe. Analogamente, quando nos disponibilizamos à abertura ao novo, exercendo o nosso potencial criador, passamos a perceber cada fato que nos ocorra e afete como matéria prima para o nosso crescimento e auto-conhecimento, para a confecção das pérolas que irão compondo o nosso colar, através do entrelaçamento do eu, do outro e do meio ambiente, do real e do imaginário, na teia da vida cósmica. Nesse processo, vamos retramando o nosso destino, trabalhando sobre nossas vidas - sobre nossa mitologia pessoal - como alquimistas, resgatando os elos de nossa ancestralidade arquetipal, orquestrando os ecos de nossos outros eus e ressaltando os contornos de seus inúmeros rostos, que nos olham trevosamente, a partir de nossa alma, como Dioniso nos convidando a vestir - e paradoxalmente deixar cair - nossas máscaras...

 

O alquimista, ao se debruçar sobre a natureza, partia da matéria-prima e a submetia a uma série de processos, com o objetivo de transformá-la na pedra filosofal. Tais processos envolviam ope-

 

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rações com os 4 elementos (fogo, terra, ar e água) e com a interação entre eles, visando eliminar as impurezas e facilitar a transformação da matéria naquilo em que ela seria em essência, mas de maneira não revelada. Nesse sentido, o alquimista seria um colaborador da natureza, procurando acelerar seus processos. (Freitas, 1987, p. 22)

 

 

            Uma vez alguém disse que somos natureza vestida de gente. Nesse sentido, podemos então estreitar nossos laços com os elementos constitutivos de nossa psique, com nossa matéria prima, ao trabalhar com recursos vivenciais e expressivos relacionados aos 4 elementos e sua simbologia.

 

Anos atrás, num Workshop (Incubação de Sonhos) em Oaxaca, recebi de indígenas mexicanos preciosos ensinamentos sobre a Roda de Cura, que integra e relaciona os 4 elementos aos nossos ciclos existenciais, associando-os aos 4 pontos cardeais e seus atributos (Bernardo, 2001). Na época eu estava fazendo minha pesquisa de doutorado sobre as relações entre a Arteterapia de base junguiana, os 4 elementos, as operações alquímicas relativas a cada um deles e as 4 funções da consciência descritas por Jung (Pensamento, Sentimento, Intuição, Sensação), na busca de uma compreensão mais sólida e aprofundada das indicações e benefícios de cada recurso arteterapêutico utilizado em meu trabalho com pacientes, com meus alunos de várias faculdades (como recursos pedagógicos) e com grupos de diversas faixas etárias (crianças, adolescentes, adultos e idosos) em Oficinas de Criatividade, em instituições e consultório.

Esses ensinamentos, aprofundados pela compreensão simbólica da mitologia indígena e sua visão da rede de relações nas quais estamos inseridos, me permitiram integrar o que estava estudando e encontrando, como se fosse a derradeira peça do quebra-cabeça que estava montando.

 

 

 

 

 

 

 

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A Roda de Cura, também chamada de Roda da Doce Medicina Indígena, nos mostra que cada fase de nossas vidas é comparável ao desdobrar-se da semente (nascimento) em fruto (velhice e morte), o que constitui-se num processo de transformação. Como em meu mestrado eu já havia concluído que o processo criativo desencadeia processos de transformação que alimentam e promovem o nosso crescimento psíquico (Bernardo, 1994), essa perspectiva não só fez muito sentido, como descortinou novos horizontes e possibilidades de atuação. Em todos os rituais indígenas de cura encontramos formas de expressão artística (canto, dança, contação de histórias, pintura, escultura...), por isso a medicina indígena é chamada de Doce Medicina, ajudando-nos a extrair sabedoria, como néctar, de nossas experiências vividas, da mesma forma que o beija-flor se nutre do néctar das flores e nesse processo poliniza jardins.

 

 

(pg. 124 do livro)

 

Os estudos da psicologia profunda demonstram que a consciência e suas aquisições são um “filho” recente do inconsciente, e que a evolução da humanidade, como um todo, e da personalidade humana, em particular, transcorre – como é necessário – numa situação de dependência em relação às forças psíquicas que estão adormecidas no inconsciente. Desse modo, o homem moderno descobre – em um novo plano – a mesma coisa que o homem primitivo vivenciou através de formas intuitivas avassaladoras, a saber, que na força feminina geradora e abastecedora, protetora e transformadora do inconsciente atua uma sabedoria infinitamente superior à da consciência humana vígil, a qual intervém na vida do ser humano, convidada ou não, enquanto fonte da visão e do símbolo, do ritual e da lei, da poesia e da vidência, para salvar o homem e dar um sentido para sua vida. (Neumann, 1996, p. 287).

 

 

De acordo com a visão da Psicologia Analítica de C. G. Jung, o relacionamento entre os opostos está na base de nossa constituição psíquica. Assim, vamos aos poucos diferenciando a consciência do inconsciente, o dia da noite, o masculino do feminino. A nossa consciência separa os opostos para poder conhecê-los, voltando então a reuni-los numa nova totalidade, e nesse processo ela se expande e amplia. Da mesma forma que os alquimistas colocavam que os 4 elementos, que formam dois pares de opostos, estão contidos na matéria prima que deu origem a toda a multiplicidade, à criação de tudo o que existe, podemos também dizer que, além de participarem da natureza à nossa volta,  também expressam forças psíquicas atuantes em nosso desenvolvimento, podendo ser relacionados às 4 funções da consciência que intermediam o nosso contato com tudo o que existe dentro e fora de nós. (Bernardo, 2001).

O elemento Terra, que associo à função Sensação, em sua simbologia relaciona-se ao nosso corpo e a seus processos vitais e reguladores, à percepção da realidade e a tudo que nos fornece base e suporte para o crescimento, a tudo que assume uma forma definida e ocupa um lugar no espaço, ao nosso posicionamento existencial.

 

 

 

 

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Podemos trabalhar arteterapeuticamente com essas questões através de expressões tridimensionais, como modelagem em argila, escultura, confecção de caixas, jardinagem e trabalhos corporais. A Água nos remete à função Sentimento, à vida em seu fluxo ininterrupto e com suas sucessivas metamorfoses, ao Feminino em seu movimento ondulante, à capacidade de gerar e nutrir novos projetos. A pintura e a utilização de cores vão então possibilitar que esses atributos e aspectos sejam cuidados, ativados e integrados à nossa consciência. O Fogo está ligado à nossa capacidade de iluminar aspectos de nossa realidade, à tomada de consciência sobre algo, à função Intuição, à criatividade, ao calor de nossas paixões, ao desejo, à agressividade e combatividade, à atividade e dinamismo, à nossa capacidade de auto-afirmação, auto-confiança, coragem, heroísmo, à energia psíquica e à motivação. O nosso fogo interno, então, poderá ser canalizado e ativado através de atividades envolvendo velas (como por exemplo a criação de luminárias e castiçais) ou aquecimento corporal (danças, exercícios físicos que nos façam suar, etc.). O Ar representa o nosso potencial para criar imagens e atribuir significados para as experiências vividas, podendo ser relacionado à função Pensamento, e aos nossos devaneios e fantasias, às histórias que permeiam a nossa existência, aos relacionamentos de maneira geral. Contar histórias, dramatizá-las, bem como o trabalho com mandalas, com costura, tecelagem e fios em geral são formas de proporcionar a elaboração de questões referentes a esse elemento.

           

O ser humano organiza e dispõe desses elementos na sua auto-construção e na constituição de sua personalidade, e apesar de partirmos da mesma “matéria prima”, cada um de nós os articula de uma maneira  única e singular, de acordo com nossas características pessoais, nossa história de vida, nossas crenças, nossa cultura, nossas vivências e potenciais inatos. Na medida em que interagimos com esses aspectos tanto interna como externamente e os integramos à consciência, vamos percebendo e entendendo que o eu e o outro são

 

 

 

 

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aspectos diferentes de uma mesma realidade (repleta de diversidade) e que todos os pontos de vista merecem ser respeitados, o que resgata a nossa dignidade como ser humano e, conseqüentemente, a nossa cidadania. (Bernardo, 2001, p. 225)

 

 

“... e Atum disse para Hórus: Você não entende a Terra?

Ela é um espelho – tudo é espelho de mim...”

(mito egípcio de Ísis e Osíris)

 

A nossa consciência vai, como foi dito, discriminando e relacionando as polaridades em novas unidades cada vez mais complexas e abrangentes. Sendo focal, ela cria sombra ao destacar elementos do todo. A sombra representa o que não queremos e/ou agüentamos enxergar, sendo facilmente projetada no outro. Mas é também o desconhecido dentro e fora de nós. Nossos outros eus desgarrados, foragidos, excluídos ou simplesmente não reconhecidos nos são revelados através do contato com o outro que nos afeta. Olhar para o outro e para o mundo como espelho abre os portais de nossas cavernas internas, permitindo-nos acessar histórias inscritas em suas paredes: em nosso corpo, em nossos sonhos, em nossos lampejos de completude...

            Após voltar do Workshop do México, coordenei um curso vivencial e teórico sobre os fundamentos da Arteterapia de base junguiana[1], no qual trabalhei também com alguns recursos expressivos inspirados nos ensinamentos e mitologia indígenas[2]. Uma das vivências que realizei com os alunos foi a confecção e passagem do Bastão que Fala (Talk Stick), instrumento indígena utilizado, há muitos séculos, em cerimônias de tomada de decisão, em rodas de partilha, sonhos ou contação de histórias. O Bastão que Fala trabalha a possibilidade de relacionamento amoroso, respeitoso e compassivo entre as polaridades. Ele é construído a partir do entrelaçamento de elementos representantes dos três reinos – mineral (pedras), vegetal

 

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(folhas e flores), animal (penas, peles, couro) – e dos 4 elementos em um graveto, o qual é segurado pelo homem (reino humano, que sintetiza os outros 3 reinos e os 4 elementos). Ele pode ser construído individual ou grupalmente, e pode ser usado para fechar ou iniciar vivências, em escolas, grupos terapêuticos, oficinas, etc. Quem o segura tem o poder da palavra e o compromisso de falar com o coração. Enquanto o seu portador fala, ninguém pode interrompê-lo, e quando acaba seu discurso diz: “Eu sou (nome da pessoa) e eu falei!”, passando então o Bastão para quem estiver a seu lado, até que todos tenham tido a oportunidade de se pronunciar. Quem ouve tem o compromisso de escutar com o coração o que o outro diz, e isso significa ouvi-lo sem julgamento nem crítica, cada pessoa tem o direito a ter seu ponto de vista respeitado.

           

Nesses rituais, considera-se que o outro é um outro de si próprio e expressa, através de seu ponto de vista (que é constituído a partir de suas experiências únicas ao longo de sua vida e de seu momento atual) uma sabedoria que pode sempre enriquecer a todos e com a qual todos podem aprender. Além disso, todos os pontos de vista são valorizados, ninguém é considerado o “dono da verdade” (pois cada enfoque ilumina um dos aspectos da realidade, que é multifacetada), e o poder é distribuído igualmente entre todos os membros do grupo, sendo que, sentados em círculo, estão todos eqüidistantes do Centro, local que representa a Fonte de toda a vida e poder, o “Grande Mistério”, geralmente marcado por uma fogueira ou incensário. (Bernardo, 2001, p. 173).

 

 

O Bastão representa o Universo como uma rede, uma teia interligando todos os seres numa única realidade que se expressa através da multiplicidade de formas existentes no Universo, caleidoscopicamente. Podemos então dizer que cada ser, a partir de seu ponto de vista e do lugar que ocupa, em seu momento existencial, na Roda da Vida (Roda de Cura), está corporificando e espelhando um dos aspectos da realidade. Quando nos disponibilizamos a interagir com esses diferentes aspectos, os integramos em nossa consciência, am-

 

 

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pliando-a. Cada outro que encontramos, cada trabalho expressivo ou corporal que realizamos, cada sonho ou imagem que configuramos, se nos ilumina, através de um processo de espelhamento, personagens e paisagens que nos habitam, promovendo a abertura de sulcos por onde nossa energia psíquica pode fluir, regando nossas sementes (potenciais) e alimentando nosso crescimento.

            A confecção do Bastão desperta sentimentos profundos, associados a uma sabedoria ancestral que pode estar adormecida no interior de castelos rodeados de espinhos, como num conto de fadas, mas que em seu sono nos sonha reis e rainhas de nosso próprio reino, arquitetos e co-criadores de nosso destino como ser e como humanidade, nos religando às nossas raízes arquetípicas. Vivenciar esse ritual, atualizado e adaptado às nossas condições e necessidades atuais, ajuda-nos a resgatar elos perdidos que trazem à tona um novo desenho em que o eu, o outro e o mundo se integram e sintetizam, mantendo no entanto a sua singularidade, como que formando os matizes que compõem um arco-íris. Além disso, traz às nossas vidas a dimensão do sagrado, engendrando o respeito para com todas as formas de vida que nos cercam e nos constituem como ser, num trabalho de ecologia profunda.

 

O bastão liga-se ao conjunto de símbolos relativos ao Eixo do Mundo[3], ao Centro, local de abertura a níveis de consciência transcendentes, ao plano divino (permitindo a comunicação entre o homem e o plano espiritual). No Centro encontram-se, alinhados num eixo vertical, os três níveis da existência: ctônio (instintos), terrestre (consciência) e celeste (arquétipos). Temos no símbolo do bastão a junção desses 3 níveis aos 4 elementos - ligados  também aos 4 pontos cardeais, que se estendem num eixo horizontal, caracterizando a realidade manifesta -, sendo o Centro o ponto de interseção dessas 2 coordenadas, correspondendo ao número 7. O homem, quem segura o Bastão, tem em sua constituição psíquica o entrelaçamento de todos esses aspectos, sendo a expressão de sua

 

 

 

 

 

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integração e síntese. Esses 7 aspectos do Ser: terra, água, fogo, ar, mineral, animal, vegetal são como os “nomes de Deus” (como diz Foster Perry), e o homem traz todos eles em sua constituição, espelhando o Criador e podendo igualmente espelhar-se na Criação. (Bernardo, 2001, p. 176)

 

 

O Bastão que Fala expressa ainda uma complexio oppositorum (conjunção de opostos) ao relacionar amorosamente (com o coração) o falar (ativo, masculino) e o ouvir (receptivo, feminino). Pode-se fazer uma analogia entre abrir-se para ser tocado pela palavra do outro e o encontro amoroso, o que conjuga Logos e Eros num movimento fecundo que está na base de nossa

criatividade. O caduceu de Hermes (símbolo da medicina), tem duas serpentes – que representam os princípios sombrios e luminosos, femininos e masculinos – entrelaçadas ao seu redor.

 

“Eu sou um outro você e você é um outro de mim”

(ensinamento maia)

 

Há algumas vivências corporais que favorecem o trabalho com a questão do espelhamento. Numa delas, bastante conhecida, forma-se uma roda e todos começam a dançar. Então uma pessoa se coloca no meio da roda e todos reproduzem os seus movimentos, e as pessoas vão se alternando no centro até que todos tenham tido a oportunidade de ser espelho do outro e de ser espelhado pelo outro. Isso pode ser feito em duplas também. Quando trabalho com duplas, começo com todos os participantes explorando o espaço da sala de olhos fechados, andando por ela. Aos poucos, as pessoas são orientadas a interagirem através de alguma espécie de toque com quem forem esbarrando, até que encontrem alguém para ser seu parceiro, e começam uma dança com as mãos tocando-se, ainda de olhos fechados. Num determinado momento, peço que abram os olhos, afastem as mãos e que um seja o espelho do outro nessa dança. Após algum tempo, peço que invertam seus papéis. Essa vivência pode ainda ser

 

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seguida de alguma atividade expressiva, como a confecção de uma moldura para um espelho.

            O tema do espelho nos remete ao mito grego de Narciso e Eco. Narciso era filho de uma ninfa, Liríope, e do deus do rio, Céfiso. O rio pode ser simbolicamente associado à correnteza da vida, à nossa energia vital e ao fluxo de nossas emoções. Junito S. Brandão (autor de vários livros sobre mitologia), numa palestra que deu sobre o assunto, disse que: “o rio, a água, possui uma grande energia, sobretudo uma energia sexual”, e Liríope não o queria porque ela queria o deus Pan – a palavra Pan quer dizer “tudo”, e Pan, segundo Brandão, é símbolo da fertilidade universal (daí vem a palavra pânico, associada ao medo do fluxo poderoso e muitas vezes incontrolável dessa energia).

Liríope passeava distraída pelas margens de Céfiso e ele arrastou-a, apaixonado por ela. E quantas vezes não somos "arrastados" pela vida para situações que não escolhemos, mas que nos escolheram, e descobrimos então que a vida nos reservava presentes, dádivas que, sem dúvida, também cobram o seu preço... Foi o que aconteceu com Liríope, que foi presenteada com uma criança linda, de uma beleza ímpar que afrontava os deuses – Narciso. Isso assustou Liríope, porque ela sabia que os deuses castigavam quem lhes excedesse em beleza, e por isso ela foi se aconselhar com o vidente Tirésias. E Tirésias também tem a sua história, o seu mito, que não vou falar aqui, mas é importante saber que ele tinha o dom da mantéia (adivinhação) porque ele "não enxergava prá fora, ele enxergava prá dentro, e todo adivinho grego era cego" (Brandão). Liríope perguntou a ele se Narciso viveria longos anos, e ele respondeu: "se ele não se vir, se ele não se olhar, se ele não se contemplar"... E por isso Narciso ainda não se conhecia, nunca tinha olhado para sua imagem, e quando se viu no lago, se apaixonou pelo outro que ele via, e que desconhecia... esse outro que ele é de si mesmo, como os nossos outros eus que nos habitam e nos permitem reconhecer outros também fora de nós. É o início do amor próprio, condição para poder haver e nascer também o amor pelos outros de nós. Portanto, o que

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há de errado com Narciso? Antes de falar sobre isso, porque essa resposta demanda o conhecimento da importância de Eco nesse mito, vamos ver o que aconteceu com ela nesse meio tempo.

Eco era uma ninfa extrovertida, falante e comunicativa, e Zeus pediu-lhe para distrair Hera, sua esposa sempre preocupada em vigiar os seus passos para que não a traísse, enquanto Zeus dava suas escapadas para fertilizar outras mulheres, já que ele era o representante do poder fecundante masculino, como rei que era do Olimpo. Quando Hera descobriu esse acordo entre os dois, castigou Eco, condenando-a ao pior dos castigos, tirou-lhe o dom do Logos, da palavra, do verbo, condenando-a a somente repetir os finais das frases que os outros falavam.

Assim, posto isso, vamos ver o que aconteceu com o nosso casal... Narciso era muito introvertido, "na dele". Certa vez ele caçava com amigos num bosque, e Eco, apaixonada perdidamente por ele (como aliás muitas outras ninfas), o seguia, mas não podia dirigir-se a ele porque não podia falar, procurando sem sucesso chamar sua atenção - pois se Narciso não se conhecia, não podia também reconhecer o outro, ecoá-lo: a noção de eu e de outro nascem ao mesmo tempo, os opostos se pedem e se necessitam para que o nosso desenvolvimento aconteça. Pois bem, estão eles no bosque, num dia muito quente, quando Narciso se perde de seus companheiros, e grita para eles: "Unamo-nos!". Eco pensou que ele falava com ela e correu em sua direção, sendo repudiada por ele com frieza, e entristecida definhou ali mesmo, transformando-se em pedra, em caverna, num grande vazio... As outras ninfas, revoltadas com a rejeição de Narciso a Eco e com o que tinha acontecido com ela, recorreram à deusa Nêmesis, pedindo vingança. E como Nêmesis (deusa da justiça distributiva, donde decorrem os castigos pelas injustiças praticadas) não tolerava que uma mulher sofresse pela repulsa de um homem, condenou Narciso a amar um amor impossível. Como Narciso estava com sede, debruçou-se sobre um rio para beber água, e deparou-se com sua imagem – lembrando aqui do que Tirésias havia dito sobre ele não se vir... – e então não conseguiu mais

 

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sair do local, deixou de se alimentar e ali morreu, mergulhando em sua sombra, à procura de sua alma (e a palavra alma, reflexo, espelho e psique são correlacionadas etimologicamente). Eco perdeu Logos, a capacidade de reflexão e de auto-reflexão, e Narciso perdeu Eros, a capacidade de se relacionar com o outro...

No outro dia, ao procurarem Narciso, encontraram no local uma flor com o centro amarelo, cercado de pétalas brancas. A flor Narciso é muito usada na Grécia para o culto dos mortos, para cobrir as sepulturas, e a morte é como um grande sono, um grande torpor que nos leva a penetrar em outras dimensões da existência, de acordo com essa visão simbólica. E a flor narciso cumpre sua função iniciática também em outro mito, no mito de Perséfone e Deméter (deusa da fertilidade, da terra cultivada), quando Perséfone, ao colher uma flor de narciso, é raptada pelo rei do Hades (reino dos mortos, das sementes, da força regeneradora e transformadora da sexualidade), Plutão, separando-se de sua dependência com relação à sua mãe e tornando-se mulher, iniciando-se nos mistérios femininos, transformando-se na rainha do Hades. Deméter, ao conseguir que sua filha passasse 6 meses lá embaixo com o marido (outono e inverno, quando a vida se recolhe para se renovar, se reciclar, e renascer na primavera) e 6 meses com a mãe sobre a terra (primavera e verão, quando Deméter cobre a terra com suas dádivas, com flores e frutos, pois é a deusa da terra cultivada), ensina aos homens os Mistérios de Elêusis, iniciando-os nos mistérios da criação, da semente que se transforma em grão – do processo de transformação que envolve nascimento – morte - renascimento, o que garante a fertilidade da terra e de todas as nossas relações – e Deméter então ensina os homens a cultivar a terra, a trabalhar conscientemente com o seu potencial criador.

Jung nos ensinou que, do ponto de vista simbólico, os personagens dos mitos e contos de fadas podem ser vistos como representantes de forças que atuam em nossa psique coletiva, e portanto fazem parte da constituição de nossa natureza humana e da natureza plane-

 

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tária (de acordo com o ponto de vista da psicologia simbólica, psique e mundo são aspectos diferentes de uma mesma realidade multifacetada, que se manifesta através de infinitas faces). Por isso, o conhecimento do mundo e da natureza à nossa volta tem como contraponto e complemento indissociável o auto-conhecimento. E, sendo forças, essas forças não são "boas" nem "más", tudo depende do direcionamento que damos a elas, de como as atualizamos e contextualizamos, de como nos relacionamos com elas. Sendo assim, Eco pode representar a capacidade de ecoar o outro, de se colocar no lugar do outro, como uma mãe "suficientemente boa" ao cuidar de seu bebê. Sem a auto-reflexão e a busca do auto-conhecimento, representada por Narciso, Eco se resseca, seu discurso torna-se oco, vazio, petrificado e, consequentemente, estéril e sem vida, repetindo fórmulas já consagradas, mas desgarradas de seu veio, como um corpo desvinculado de sua alma. E há outro ponto a considerar aqui, com relação ao narcisismo doentio presente em nossa época e cultura: Narciso não se conhecia, não sabia que o outro que viu no espelho era ele mesmo, não tinha até então tido a oportunidade de se espelhar em ninguém. A falta do auto-conhecimento desemboca na incapacidade de reconhecimento do outro e de sua importância em nossas vidas, e por outro lado precisamos sempre do outro para nos espelhar e para nos descobrirmos. Quanto menos consciência temos de nossas sombras, de nossas limitações e capacidades, de nossa interioridade (quanto menos nos olhamos no espelho), mais as projetamos no outro, e menos capacidade temos então de enxergá-lo e de considerar o seu ponto de vista – quanto menos amor próprio, menos amor ao próximo, e vice-versa. A criança pequena é chamada de narcisista porque está misturada com o outro e com o mundo, ainda não se diferenciou, ainda não estruturou uma noção de eu e de outro, e não porque não quer saber do outro, por isso o egoísmo é quase sempre uma conseqüência da auto-ignorância, e o preconceito idem, da falta de contato com os outros que nos habitam, dentro e fora de nós, falta de profundidade do olhar...

 

 

 

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Assim como Narciso precisa de Eco para não perder-se em si mesmo, Eco dele necessita para não perder-se na multiplicidade do mundo, para não perder o contato com a unidade inconsciente (Self) que fertiliza o solo psíquico, trazendo a possibilidade de renovação.

 

 

“Mas é de noite, quando a alma vigia

e um olho, que não o do corpo, espia

(...)

A humilhação me prostra,

Meia-noite, meio da vida a pino,

A cova, a mãe, o grande escuro é Deus

E forceja por nascer da minha carne.

(Adélia Prado)

 

 

O espelho aparece ainda no mito de Dioniso, o deus grego do êxtase, do entusiasmo e da transformação, ligado ao teatro e às máscaras. Quando era criança, foi distraído pelos Titãs, os quais polvilharam seus rostos com pó de gesso para disfarçarem-se, com brinquedos místicos: ossinhos, chocalhos e um espelho. Os Titãs estavam a mando de Hera, que queria exterminar Dioniso por ser filho de uma das uniões ilícitas de Zeus. Ao se olhar no espelho, Dioniso tornou-se presa fácil, pois sua alma foi capturada pela sua imagem refletida. Ele foi então desmembrado pelos Titãs, que cozinharam seus pedaços num caldeirão e o comeram. Mas seu coração foi salvo a tempo por Zeus, que o deu a Sêmele para engoli-lo, o que fez com que ela engravidasse do segundo Dioniso, renascido. (Brandão, 1987).

Podemos fazer uma analogia entre esse mito e o que acontece nas nossas relações: resgatamos nossos fragmentos espalhados pelo mundo e projetados muitas vezes no outro ao reconhecer e dar voz aos outros de nós, reunindo-os em nosso caldeirão, em nosso espaço sagrado, vaso de nossa alquimia interior, retirando nossas projeções, iluminando nossos potenciais e integrando esses conteúdos à nossa personalidade, tornando-nos mais inteiros. Isso desencadeia um pro-

 

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cesso de transformação que desemboca num renascimento a partir do coração, órgão que simboliza a reunião amorosa e síntese harmoniosa entre os opostos. E um recurso que facilita esse processo é a confecção de máscaras, criação de personagens e dramatização, trabalhando com a mitologia criativa.

 

Trazer nossa psicomitologia pessoal à tona é o processo de lembrar e recordar a sabedoria e o amor que nos são inerentes e naturais, por meio de nossos sonhos acordados ou mito. Através das imagens e da ‘sessão de jornada’, a psique fará refletir de volta a orientação ou o trabalho de cura de que necessitamos. (Arrien, 1997, p. 54).

 

A primeira vez que confeccionei uma máscara foi numa aula com Laura Villares (IPUSP), em que modelamos um rosto em argila, com os olhos fechados, e depois, com tiras de jornal embebidos em cola, construímos uma máscara, a pintamos e dramatizamos. (Freitas, 1995). Anos depois, ao trabalhar como Psicóloga da Saúde (PMSP) num Centro de Convivência e Cooperativa, onde coordenava, em equipe multiprofissional Oficinas de Criatividade com todas as faixas etárias (Bernardo, 1994), aprendi a confeccionar máscaras do próprio rosto com atadura gessada. Passei então a utilizar a confecção de máscaras, criação de personagens e sua dramatização como recurso arteterapêutico.

Num dos grupos com que fiz esse trabalho, iniciamos com um relaxamento em que cada um se imaginava como saindo de um grande mar e se transformando em pedra, planta, animal, passando assim pelos três reinos (que correspondem a aspectos da nossa vida psíquica). Retornando do relaxamento (em que os participantes estavam deitados em colchonetes), ainda de olhos fechados, cada um procurou um parceiro. Os parceiros sentaram-se de frente um para o outro, tocando-se e reconhecendo-se através das mãos, compartilhando, em seguida, em duplas e depois com todo o grupo, seus sentimentos e sensações com relação à vivência. 

            Sobre a formação de símbolos e sua relação com a utilização das mãos, Von Franz (1992) conta que Jung utilizava-se de recursos artísticos – pin-

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tava, desenhava mandalas, esculpia na pedra, etc. – para ajudá-lo a clarear suas pesquisas sobre o inconsciente e suas próprias questões existenciais.

            Ao tocar as mãos do outro, desencadeou-se no grupo citado acima um diálogo sem palavras permeado por sentimentos e sensações. Esse olhar com as mãos trouxe à tona a dimensão amorosa da experiência, e no final todos se abraçaram, chorando emocionados, como um grande coração pulsando e redescobrindo a alegria de estar junto, em relação. Fizemos então um intervalo, e na volta cada dupla confeccionou a máscara em gesso do rosto de seu parceiro. Fizemos o fechamento dessa vivência com uma dança cantada circular indígena.

            A máscara em gesso do próprio rosto o fossiliza, dando-lhe uma nova roupagem e trazendo à luz aspectos não conscientes que poderão ser integrados à consciência, ampliando-a. Brandão (1987) comenta que o pó de gesso, no mito de Dioniso, cumpre uma função iniciática, marcando a sua passagem para a vida adulta. Ao assemelharem-se a fantasmas, os rostos com pó de gesso expressam uma morte simbólica. O contato com o outro - com nossos fantasmas internos que vagueiam pelos nossos umbrais, esperando por sua redenção e reintegração na correnteza da vida, como ovelhas desgarradas de seu rebanho - nos transforma, se puder ser fecundo, propiciando um novo olhar, mais amplo, mais integrado, para si próprio e para o mundo.

Ao confeccionarmos uma máscara, concretizamos (e toda concretização é um nascimento e uma morte simultâneos) alguns desses aspectos banidos ou não reconhecidos de nossa psique, transformando-os em nossos aliados, em matéria prima de novas singularizações, dando-lhes voz e a oportunidade de dizerem a que vieram – uma história, um mito. E aqui é importante lembrar que Dioniso era o deus das máscaras e do teatro. Com isso descortinamos a possibilidade de abertura ao diálogo interno, exercendo a alteridade e abrindo espaço para a troca com o outro dentro e fora de nós. Vivenciamos nossos mundos parciais para podermos nos reintegrar no coração do Universo, como centelhas de luz que compõem as cons-

 

 

(pg. 137 do livro)

 

 

telações, possuidores de mitologias pessoais que interconectam-se com a eternidade, com as mitologias cosmológicas. Isso nos disponibiliza para a experiência do Infinito, sem nos despedaçarmos por ela[4], pois é contida no contexto do ritual,  de um espaço protegido que funciona como um caldeirão que transformará os fragmentos vivenciados em alimento que recompõe, numa nova ordem, a consciência assim expandida, como nos rituais dionisíacos. (Bernardo, 2001).

Para o encontro seguinte, foi pedido a cada membro do grupo que pintasse a sua máscara, inspirando-se num dos 4 elementos, e que criasse uma história para ela. Depois houve o momento da dramatização desses personagens, de vestir a máscara, incorporá-la, e assim olhar-se de dentro para fora, a partir do olhar de sua alma... A seguir compartilhamos essa experiência, elaborando as questões trazidas por cada participante.

 

...Olharemos então para além de nossos olhos, seguindo a trilha

que se abre, como um espelho, no centro de nossas pupilas.

Atravessaremos eras, e tantas vezes morreremos e renasceremos,

que o suor de nossos corpos em quase combustão

lavará e batizará nossas almas que, assim renovadas,

se reencontrarão no altar

que nos farão homem e mulher numa só carne.

Acontecerá assim, por acontecer,

porque é hora de caírem os véus, é tempo de resgatar a integridade,

é momento, que se impõe como necessidade,

de se unirem as pontas do arco que nos lançarão, como setas,

a um novo patamar de consciência.

E digo mais: se é para ser assim, que seja já!”

(Trecho de “Hieros Gamos”, poema de minha autoria, 1999)

 

 

 

 

 

 

(pg. 180 do livro)

 

 

O mito de Dioniso pode ser associado ao arcano “O Louco” do Tarô, o qual expressa a abertura para o insondado, a capacidade de mudança, o salto no abismo, o mergulho criativo no inconsciente de onde se pode emergir renovado, e não raro com alguma de suas preciosidades em mãos (e com elas vamos formando nossos tesouros...). Ele representa a experiência do unus mundus. Sobre essa dimensão da experiência humana Jaffé (1988), citando Neumann, comenta:

 

Aquilo que Neumann chamava de “a grande experiência” era a “abertura através do simplesmente pessoal e dos mundos parciais, para algo vivo, que constitui o mundo transpessoal da realidade” (...) Essa abertura pode ser vivida pelo homem chamado, na linguagem corrente, de criativo – como, por exemplo, o artista -, através da “inspiração”. (p. 82-83).

 

Em concepções de várias culturas encontramos uma base única para a Criação, e sua multiplicidade pode ser vista como as diferentes roupagens do Ser, a expressão de seus infinitos rostos ou como os diferentes mantos com os quais a Energia Divina primordial se reveste em sua eterna dança Cósmica. E como a Criação não pára, estamos participando o tempo todo desse continuum existencial através do qual moldamos o mundo e somos moldados pelas relações que estabelecemos com ele. A renovação e regeneração periódicas fazem parte desse coagular e destilar contínuos, nesse intercâmbio energético entre matéria e espírito, corpo e alma, que se realiza como um ato amoroso, um hieros gamos que consiste num processo de transformação que regula a vida psíquica e a Natureza em todos os seus reinos. Sendo assim, até os nossos pensamentos mais sutis possuem um peso e podem fazer vibrar essa grande teia da existência, e até uma pedra, com sua massa inerte, possui seus “sonhos de pedra”, um potencial de vir a ser latente, um sopro de vida que faz moverem-se suas partículas.

 

Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avós. Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida com as vidas de nosso povo. Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas: que a terra é nossa mãe. Tudo o

 

(pg. 139 do livro)

 

 

que acontecer à terra, acontecerá aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos. Isto sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo. O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo. (www. cetesb.br/Indio/indio 1.htm, discurso).

 

 

O “fio da vida” relaciona-se ao destino, tecido pelas Moiras no momento do nascimento de  uma criança: Cloto (fiar) é quem segura as linhas da vida, Láquesis (sortear) é quem sorteia o fio e Átrpos (a que não volta atrás) é quem o corta, trazendo a morte. A atividade de tecer é, em vários mitos e culturas, um atributo do Feminino, e poderíamos dizer que a mãe tece em seu útero o corpo da criança (com o sangue – fogo interior), as vestes de uma nova vida. Da mesma forma, inúmeras são as analogias entre o Cosmo e a teia, a trama, a rede e o tecido da vida que congrega toda a Criação. A esse respeito, Eliade (1991) comenta que, para os indianos, “o ar (...) ‘teceu’  o Universo, ligando, como que por um fio, este mundo ao outro mundo e todos os seres (...) da mesma forma que um sopro (prana) ‘teceu’ a vida humana.” (p.112).

Em alguns mitos, o mundo surgiu a partir do umbigo de Deus, como a substância da teia da aranha sai de si própria, ou nasceu das partes desmembradas do Antropos – o Homem Primordial, ou das partes de algum deus ou deusa. Do Um surgiram todas as coisas, por um processo de diferenciação de seus infinitos aspectos, que lançaram-se para fora de Si como Sua “cria”, sua partogênese, talvez para que pudesse tomar consciência de Si próprio, olhando-Se através de Seus filhos.

 

 

 

“ ... Quando o vermelho e o azul se mesclam, no entardecer,

Íris aquarela o céu com as cores do seu arco.

Nesse momento, corro para o mar

 

 

 

 

(pg. 140 do livro)

 

 

 

para ver se me alcanço e me alço de volta das águas,

como que ressuscitando de mim Osíris, o amante interno,

com quem me devolverei à inteireza de ser corpo e alma,

pois Deus está mesmo em toda a parte...”

(trecho de “Sóis e Luas”, poema de minha autoria, 1998)

Conta o mito que n

        O mito egípcio de Ísis e Osíris nos conta que no início só havia Atum, que desejando não estar mais só, pronunciou as primeiras palavras, criando dois seres: o Ar e a Umidade (a Água). Esses dois elementos fundiram-se em sua paixão mútua, e desse encontro nasceu a Terra (Geb) e o Céu (Nut), que também apaixonaram-se um pelo outro. O seu amor fez com que as montanhas crescessem, e o Céu desceu sobre a Terra, abraçando-a. Desse encontro nasceu o Sol (Ra), dourado, e sua irmã, a Lua (Thoth) de prata. Os dois irmãos enciumaram-se de sua mãe quando ela engravidou de novo de seu pai, e disseram um para o outro: “separemos os dois”, e assim o fizeram... A Terra gritou, houve trovão e relâmpagos, e em seu útero estavam Ísis e Osíris, além de mais três irmãos. O primeiro a vir ao mundo foi Osíris, que recebeu as terras pretas, férteis, seguido de Seth (o rebelde, o que nunca está satisfeito, a paixão caótica e a destrutividade), a quem foram dadas as terras vermelhas, onde nada cresce e proliferam os animais selvagens – terra para a caça. O terceiro filho foi Hórus, o que nascerá duas vezes, a quarta foi Ísis, que era como o Céu na Terra, em forma de mulher, tamanha sua beleza e doçura. Foi ela quem ensinou as mulheres a trançar seus cabelos, a tecer suas roupas, a se perfumar, a passar romã nos lábios e a cuidar do próprio corpo, enquanto Osíris ensinou os homens a cultivar a terra. A quinta a nascer foi Néftis, a irmã de Ísis que veio a casar-se com Seth. Ísis casou-se com Osíris, e o palácio onde moravam era de ouro e prata, com as paredes repletas de diamantes.

            Seth, enciumado do irmão e almejando o seu trono, o encerra num caixão e o lança no Nilo. Ísis consegue resgatar o corpo de Osíris

 

 

 

 

(pg. 141 do livro)

 

e tenta ressuscitá-lo, criando um fogo e dançando ao redor do fogo dias e noites, até que os olhos de Osíris se abrem e ela tenta trazê-lo de volta. Ela o deixa sobre o altar por uma noite, enquanto sai para pedir ajuda aos seus irmãos. Seth, que caçava naquela noite, encontra Osíris e o corta em 14 pedaços, colocando-os num saco que joga no Nilo. Pressentindo o que acontecia com Osíris, Ísis sai com os irmãos à procura do marido, gritando... Acha as suas pernas, os seus braços, as suas orelhas... mas um enorme peixe acaba por engolir o pênis de Osíris, a décima quarta parte de seu corpo esquartejado. Diante disso, Ísis constrói um pênis de madeira sagrada para Osíris, que acorda, e desde então vive na terra dos mortos.

Todas as noites, Ísis faz amor com Osíris, e em sua honra constrói templos por todo o Egito. Ísis anda pelos templos ensinando aos homens a espiritualidade - como acordar Osíris. Querendo conhecer o pai, Hórus transforma-se em falcão, e durante o dia voa cada vez mais alto buscando pelo pai, com quem conversava às noites, em sua tumba. Osíris vai lhe ensinando a lutar, a ser um guerreiro, a justiça e a agricultura. Quando já está pronto para seguir seu caminho com segurança e autonomia, o pai o deixa, e com o disco solar à sua frente, Hórus é invejado por Seth, seguindo-se daí uma disputa entre ambos (que durou 80 anos), até que Ísis tira Seth da Terra, dando-lhe uma carroça na qual ele carrega o Sol, originando o tempo.  (versão do mito contada por Foster Perry em um Workshop que coordenou no Brasil em novembro de 2000, do qual participei).

 

Os egípcios haviam-se impressionado com a mancha estranha que existe sob o olho do falcão, olho que tudo vê; e, em torno do olho de Hórus desenvolve-se toda uma simbólica de fecundidade universal ... Em todas as tradições egípcias o olho se revela como sendo de natureza solar e ígnea, fonte de luz, de conhecimento e de fecundidade.(Chevalier e Gheerbrant, 1993, p. 655.

 

 

O tema do despedaçamento e reconstituição acompanhada de um renascimento, que já vimos no mito de Dioniso, aparece novamente aqui.. Dessa forma, algo novo é acrescentado e integrado ao corpo e à

(pg. 142 do livro)

 

 

personalidade, e no caso de Osíris isso está representado através de seu novo pênis, simbolizando a renovação da fertilidade (de seu potencial criador) concretizada em seu filho Hórus. Esse tema também é encontrado no xamanismo: são colocados cristais ou metais no novo corpo do iniciado, durante sua morte simbólica, da qual renasce, transformado em xamã e dotado de poderes de cura. (Eliade, 1998).

Podemos dizer que, quando algo morre para a consciência, é deflagrada a sua busca, que se configura na busca do sonho, do significado, da própria alma, impulsionando o desenvolvimento e a atualização de potenciais. No mito de Eros e Psiqué, ela tem como sua última tarefa para reencontrar Eros entrar no Hades (no reino dos mortos, no inconsciente) e trazer para Afrodite a caixa que contém a beleza imortal, que também é o sono eterno – a morte, a perda momentânea de consciência – do qual é despertada por Eros com suas flechas, emergindo como Psiqué casada com Eros. Nesse mito, uma mortal ascende ao reino divino, enquanto a força arquetípica que Eros representa é humanizada, podendo estar a serviço do relacionamento.

Dar corpo e voz aos nossos personagens internos, através da utilização de recursos vivenciais e expressivos, desenvolve a nossa intuição (que nos permite olhar a semente e ver nela a árvore) e a nossa capacidade de olharmo-nos como outros de nós mesmos, abrindo assim o caminho para a realização de nossos potencias e sua integração à nossa consciência, expandindo-a. Isso nos coloca em contato com “mundos dentro de mundos”, com a miríade de aspectos presentes em nossas vidas, na Natureza e em nosso universo interior.   

           

Claudel dizia que há um certo azul do mar tão azul que somente o sangue é mais vermelho. Valéry falava no secreto negrume do leite que só é dado por sua brancura. Proust falava numa pequena frase musical feita de doçura retrátil e friorenta. Merleau-Ponty fala num olho que apalpa cores e superfícies, num pensar que tateia idéias para encontrar uma direção de pensamento, numa idéia sensível que nos possui mais do que a possuímos, como o pintor que se sente visto pelas coisas enquanto as vê para pintá-las. (Chauí, apud Ferreira Santos, 2004, p. 114)

(pg. 143 do livro)

 

 

 

A reversibilidade desse olho tateante que nos vê, desse silêncio que nos diz, desse movimento que nos detém está também incrustada na obra estética. (Ferreira Santos, 2004., p. 114)

 

Talvez se passássemos o Bastão para o outro – dentro e fora de nós - sempre que atingíssemos nossas fronteiras, delimitadas pela parcialidade de nosso campo de visão, pela unilateralidade de nossa consciência, que necessita do contato com as profundezas oceânicas inconscientes para equilibrar-se e ampliar-se, poderíamos atingir um nível de integração que começasse a curar as feridas oriundas do “pecado original” de acreditar-se separado do todo. Se o conhecimento do mundo se conecta ao auto-conhecimento e à totalidade da vida, pode transmutar-se então em sabedoria orvalhando sobre nosso chão, germinando nossas sementes criativas e nos projetando para novas dimensões existenciais, ressuscitando os nossos mortos, renascidos no trigo com o qual poderemos fazer nossos pães, alimentando-nos a partir da fertilidade de nosso solo ancestral (da sabedoria da psique), e criando alma (Psiqué) conjugada a um corpo (Eros) que se revitaliza através de sucessivas transformações... Mas isso só é possível se contarmos com as bênçãos de Ísis, a grande iniciadora dos homens nos mistérios da vida, da morte e da transcendência - e da harmonia, da beleza e da criatividade...

 

 

 

 

 

Com o encontro da ancestralidade que nos constitui neste momento fugidio em que nos instalamos na trajetória do amanhecer da divindade humana ao poente da humanidade divina de quem, fiel ao Criador – seja ele quem for -, continua a obra da criação: música e poesia, movimento e imagem...

Criação que nos faz humanos. Divinamente humanos em nossa hesitação... Humanamente divinos em nossa destinação de Ser.

Aqui a jornada interpretativa mitohermenêutica revela o sentido da compreensão: começo, meio e fim de nós mesmos. Passado, presente e futuro no fio de nossas narrativas... Com o outro no mundo concreto das pessoas...

 

(pg. 144 do livro)

 

 

 

Isto se ensina?

Não. Se em-sina...

Com o testemunho autêntico de nossa presença humana, ajudando o outro a colocar-se em sua própria sina, a cumprir a sua própria destinação...

Mistério?

Sim. Isso não se esclarece... se profundiza.

(Ferreira Santos, 2004, p. 186)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                       Referências Bibliográficas

 

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BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega, V. I e II. Petrópolis: Vozes, 1986, 1987.

 

BYINGTON, C. Desenvolvimento da Personalidade - Símbolos e Arquétipos. São Paulo: Ática, 1988.

 

CHEVALIER, J. e GHEERBRANT. A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

 

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_________  O Xamanismo e as técnicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

 

(pg. 145 do livro)

 

FERREIRA SANTOS, M. CrepusculárioConferências sobre Mitohermenêutica e Educação em Euskadi. Saõ Paulo: Zouk, 2004.

 

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______________  C. G. Jung: seu mito em nossa época. São Paulo: Cultrix, 1992.

 

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____________ A Máscara e a Palavra - Exploração da Persona em Grupos Vivenciais. São Paulo, 1995, tese de Doutorado, IPUSP.

 

GOMBRICH, E. H. A história da Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

 

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MCLUHAN, T. C. (compilador)  Pës Nus Sobre a Terra Sagrada – Um Impressionante Auto-Retrato dos Índios Americanos. Porto Alegre: L&PM, 1996.

 

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Dados da autora:

 

Patrícia Pinna Bernardo - Pós-doutoranda em Educação (FEUSP), Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (USP), Mestre em Psicologia Clínica (PUC – SP), Psicóloga (USP) e Arte-educadora (FAAP), Psicoterapeuta e Arteterapeuta de crianças, adolescentes e adultos desde 1983. Coordenadora de Oficinas de Criatividade (consultório, escolas, empresas e eventos), Supervisora de atendimentos clínicos e institucionais, Coordenadora de Workshops, Cursos e Grupos de Estudos sobre Arteterapia, Mitologia Criativa e Psicologia Junguiana, Professora Universitária (Psicologia, Musicoterapia, Pedagogia, Artes Plásticas), Coordenadora e Professora da Pós Graduação em Arteterapia da UNIP. Site: www.patriciapinna.psc.br  E-mail: pat.pinna@uol.com.br   Tel (consultório): (11) 3862-2411

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] em parceria com Walmir Cedotti, outro participante do workshop de Oaxaca.

3 esse curso está detalhado e analisado em minha tese de doutorado

 

 

[3] ao qual o coração também está relacionado.

[4] que é o que acontece na “loucura patológica”, sendo de fato um risco para a consciência frágil diante das experiências numinosas, em contraposição à “loucura sagrada”, que possuía “o valor de uma experiência religiosa” (Brandão, 1987, p. 137).

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