Dados para
citação de trechos desse texto:
Nas referências bibliográficas deve ser colocado:
BERNARDO, P. P. A Mitologia
Criativa e o Olhar: Dando Corpo e Voz aos Diferentes Aspectos do Ser (p.
121 a 145), in: ARCURI, I. (org) Arteterapia
de Corpo e Alma. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
Nas
citações copiadas: por exemplo: “...quando nos
disponibilizamos à abertura ao novo, exercendo o nosso potencial criador,
passamos a perceber cada fato que nos afete como matéria prima para o nosso
crescimento e auto-conhecimento.” (Bernardo, 2004, p. 121).
Ou,
quando a citação não é copiada, mas escrita com suas próprias palavras: Segundo Bernardo (2004), cada fato que nos acontece pode trazer dados importantes
para o nosso auto-conhecimento, promovendo o nosso auto-conhecimento.
(pg. 121 do
livro)
A Mitologia
Criativa e o Olhar
dando corpo e
voz aos diferentes aspectos do ser
Autora:
Patrícia Pinna Bernardo
“Este mundo, segundo se diz, é como uma teia de
pérolas, arranjadas de tal forma que se olhando uma delas, vê-se todas as
outras nela refletidas.”
(Sutra Hindu)
Gombrich (1985) nos conta que, para
fabricar sua pérola, a ostra precisa de uma lasca, de um grão de areia, sem o
que ela crescerá como massa informe. Analogamente, quando nos disponibilizamos
à abertura ao novo, exercendo o nosso potencial criador, passamos a perceber
cada fato que nos ocorra e afete como matéria prima para o nosso crescimento e
auto-conhecimento, para a confecção das pérolas que irão compondo o nosso
colar, através do entrelaçamento do eu, do outro e do meio ambiente, do real e
do imaginário, na teia da vida cósmica. Nesse processo, vamos retramando o
nosso destino, trabalhando sobre nossas vidas - sobre nossa mitologia pessoal -
como alquimistas, resgatando os elos de nossa ancestralidade arquetipal,
orquestrando os ecos de nossos outros eus e ressaltando os contornos de seus
inúmeros rostos, que nos olham trevosamente, a partir de nossa alma, como
Dioniso nos convidando a vestir - e paradoxalmente deixar cair - nossas
máscaras...
O alquimista, ao se debruçar sobre a natureza, partia da
matéria-prima e a submetia a uma série de processos, com o objetivo de
transformá-la na pedra filosofal. Tais processos envolviam ope-
(pg. 122 do
livro)
rações com os 4 elementos (fogo, terra, ar e água) e com a
interação entre eles, visando eliminar as impurezas e facilitar a transformação
da matéria naquilo em que ela seria em essência, mas de maneira não revelada.
Nesse sentido, o alquimista seria um colaborador da natureza, procurando
acelerar seus processos. (Freitas, 1987, p. 22)
Uma vez
alguém disse que somos natureza vestida de gente. Nesse sentido, podemos então
estreitar nossos laços com os elementos constitutivos de nossa psique, com
nossa matéria prima, ao trabalhar com recursos vivenciais e expressivos
relacionados aos 4 elementos e sua simbologia.
Anos atrás, num Workshop (Incubação de Sonhos) em Oaxaca, recebi
de indígenas mexicanos preciosos ensinamentos sobre a Roda de Cura, que integra
e relaciona os 4 elementos aos nossos ciclos existenciais, associando-os aos 4
pontos cardeais e seus atributos (Bernardo, 2001). Na época eu estava fazendo
minha pesquisa de doutorado sobre as relações entre a Arteterapia de base
junguiana, os 4 elementos, as operações alquímicas relativas a cada um deles e
as 4 funções da consciência descritas por Jung (Pensamento, Sentimento,
Intuição, Sensação), na busca de uma compreensão mais sólida e aprofundada das
indicações e benefícios de cada recurso arteterapêutico utilizado em meu
trabalho com pacientes, com meus alunos de várias faculdades (como recursos
pedagógicos) e com grupos de diversas faixas etárias (crianças, adolescentes,
adultos e idosos) em Oficinas de Criatividade, em instituições e consultório.
Esses ensinamentos, aprofundados pela compreensão simbólica da
mitologia indígena e sua visão da rede de relações nas quais estamos inseridos,
me permitiram integrar o que estava estudando e encontrando, como se fosse a
derradeira peça do quebra-cabeça que estava montando.
(pg. 123 do
livro)
A Roda de Cura, também chamada de Roda da Doce
Medicina Indígena, nos mostra que cada fase de nossas vidas é comparável ao
desdobrar-se da semente (nascimento) em fruto (velhice e morte), o que
constitui-se num processo de transformação. Como em meu mestrado eu já havia
concluído que o processo criativo desencadeia processos de transformação que
alimentam e promovem o nosso crescimento psíquico (Bernardo, 1994), essa
perspectiva não só fez muito sentido, como descortinou novos horizontes e
possibilidades de atuação. Em todos os rituais indígenas de cura encontramos
formas de expressão artística (canto, dança, contação de histórias, pintura,
escultura...), por isso a medicina indígena é chamada de Doce Medicina,
ajudando-nos a extrair sabedoria, como néctar, de nossas experiências vividas,
da mesma forma que o beija-flor se nutre do néctar das flores e nesse processo
poliniza jardins.
(pg. 124 do
livro)
Os
estudos da psicologia profunda demonstram que a consciência e suas aquisições
são um “filho” recente do inconsciente, e que a evolução da humanidade, como um
todo, e da personalidade humana, em particular, transcorre – como é necessário
– numa situação de dependência em relação às forças psíquicas que estão
adormecidas no inconsciente. Desse modo, o homem moderno descobre – em um novo
plano – a mesma coisa que o homem primitivo vivenciou através de formas
intuitivas avassaladoras, a saber, que na força feminina geradora e
abastecedora, protetora e transformadora do inconsciente atua uma sabedoria
infinitamente superior à da consciência humana vígil, a qual intervém na vida
do ser humano, convidada ou não, enquanto fonte da visão e do símbolo, do
ritual e da lei, da poesia e da vidência, para salvar o homem e dar um sentido para
sua vida. (Neumann, 1996, p. 287).
De acordo com a visão da Psicologia Analítica de
C. G. Jung, o relacionamento entre os opostos está na base de nossa
constituição psíquica. Assim, vamos aos poucos diferenciando a consciência do
inconsciente, o dia da noite, o masculino do feminino. A nossa consciência
separa os opostos para poder conhecê-los, voltando então a reuni-los numa nova
totalidade, e nesse processo ela se expande e amplia. Da mesma forma que os
alquimistas colocavam que os 4 elementos, que formam dois pares de opostos,
estão contidos na matéria prima que deu origem a toda a multiplicidade, à
criação de tudo o que existe, podemos também dizer que, além de participarem da
natureza à nossa volta, também expressam
forças psíquicas atuantes em nosso desenvolvimento, podendo ser relacionados às
4 funções da consciência que intermediam o nosso contato com tudo o que existe
dentro e fora de nós. (Bernardo, 2001).
O elemento Terra, que associo à função Sensação,
em sua simbologia relaciona-se ao nosso corpo e a seus processos vitais e
reguladores, à percepção da realidade e a tudo que nos fornece base e suporte
para o crescimento, a tudo que assume uma forma definida e ocupa um lugar no
espaço, ao nosso posicionamento existencial.
(pg. 125 do
livro)
Podemos trabalhar arteterapeuticamente com essas questões
através de expressões tridimensionais, como modelagem em argila, escultura,
confecção de caixas, jardinagem e trabalhos corporais. A Água nos remete à
função Sentimento, à vida em seu fluxo ininterrupto e com suas sucessivas
metamorfoses, ao Feminino em seu movimento ondulante, à capacidade de gerar e
nutrir novos projetos. A pintura e a utilização de cores vão então possibilitar
que esses atributos e aspectos sejam cuidados, ativados e integrados à nossa
consciência. O Fogo está ligado à nossa capacidade de iluminar aspectos de
nossa realidade, à tomada de consciência sobre algo, à função Intuição, à
criatividade, ao calor de nossas paixões, ao desejo, à agressividade e
combatividade, à atividade e dinamismo, à nossa capacidade de auto-afirmação,
auto-confiança, coragem, heroísmo, à energia psíquica e à motivação. O nosso
fogo interno, então, poderá ser canalizado e ativado através de atividades
envolvendo velas (como por exemplo a criação de luminárias e castiçais) ou
aquecimento corporal (danças, exercícios físicos que nos façam suar, etc.). O
Ar representa o nosso potencial para criar imagens e atribuir significados para
as experiências vividas, podendo ser relacionado à função Pensamento, e aos
nossos devaneios e fantasias, às histórias que permeiam a nossa existência, aos
relacionamentos de maneira geral. Contar histórias, dramatizá-las, bem como o
trabalho com mandalas, com costura, tecelagem e fios em geral são formas de
proporcionar a elaboração de questões referentes a esse elemento.
O ser humano organiza e dispõe desses elementos na sua
auto-construção e na constituição de sua personalidade, e apesar de partirmos
da mesma “matéria prima”, cada um de nós os articula de uma maneira única e singular, de acordo com nossas
características pessoais, nossa história de vida, nossas crenças, nossa
cultura, nossas vivências e potenciais inatos. Na medida em que interagimos com
esses aspectos tanto interna como externamente e os integramos à consciência,
vamos percebendo e entendendo que o eu e o outro são
(pg. 126 do
livro)
aspectos diferentes de uma mesma realidade (repleta de
diversidade) e que todos os pontos de vista merecem ser respeitados, o que
resgata a nossa dignidade como ser humano e, conseqüentemente, a nossa
cidadania. (Bernardo,
2001, p. 225)
“... e
Atum disse para Hórus: Você não entende a Terra?
Ela é um
espelho – tudo é espelho de mim...”
(mito egípcio de Ísis
e Osíris)
A nossa consciência vai, como foi dito, discriminando e
relacionando as polaridades em novas unidades cada vez mais complexas e
abrangentes. Sendo focal, ela cria sombra ao destacar elementos do todo. A
sombra representa o que não queremos e/ou agüentamos enxergar, sendo facilmente
projetada no outro. Mas é também o desconhecido dentro e fora de nós. Nossos
outros eus desgarrados, foragidos, excluídos ou simplesmente não reconhecidos
nos são revelados através do contato com o outro que nos afeta. Olhar para o
outro e para o mundo como espelho abre os portais de nossas cavernas internas,
permitindo-nos acessar histórias inscritas em suas paredes: em nosso corpo, em
nossos sonhos, em nossos lampejos de completude...
Após
voltar do Workshop do México, coordenei um curso vivencial e teórico sobre os
fundamentos da Arteterapia de base junguiana[1],
no qual trabalhei também com alguns recursos expressivos inspirados nos
ensinamentos e mitologia indígenas[2].
Uma das vivências que realizei com os alunos foi a confecção e passagem do
Bastão que Fala (Talk Stick), instrumento indígena utilizado, há muitos
séculos, em cerimônias de tomada de decisão, em rodas de partilha, sonhos ou
contação de histórias. O Bastão que Fala trabalha a possibilidade de
relacionamento amoroso, respeitoso e compassivo entre as polaridades. Ele é construído
a partir do entrelaçamento de elementos representantes dos três reinos –
mineral (pedras), vegetal
(pg. 127 do
livro)
(folhas
e flores), animal (penas, peles, couro) – e dos 4 elementos em um graveto, o
qual é segurado pelo homem (reino humano, que sintetiza os outros 3 reinos e os
4 elementos). Ele pode ser construído individual ou grupalmente, e pode ser
usado para fechar ou iniciar vivências, em escolas, grupos terapêuticos,
oficinas, etc. Quem o segura tem o poder da palavra e o compromisso de falar
com o coração. Enquanto o seu portador fala, ninguém pode interrompê-lo, e
quando acaba seu discurso diz: “Eu sou (nome da pessoa) e eu falei!”, passando
então o Bastão para quem estiver a seu lado, até que todos tenham tido a
oportunidade de se pronunciar. Quem ouve tem o compromisso de escutar com o
coração o que o outro diz, e isso significa ouvi-lo sem julgamento nem crítica,
cada pessoa tem o direito a ter seu ponto de vista respeitado.
Nesses
rituais, considera-se que o outro é um outro de si próprio e expressa, através
de seu ponto de vista (que é constituído a partir de suas experiências únicas
ao longo de sua vida e de seu momento atual) uma sabedoria que pode sempre
enriquecer a todos e com a qual todos podem aprender. Além disso, todos os
pontos de vista são valorizados, ninguém é considerado o “dono da verdade”
(pois cada enfoque ilumina um dos aspectos da realidade, que é multifacetada),
e o poder é distribuído igualmente entre todos os membros do grupo, sendo que,
sentados em círculo, estão todos eqüidistantes do Centro, local que representa
a Fonte de toda a vida e poder, o “Grande Mistério”, geralmente marcado por uma
fogueira ou incensário. (Bernardo, 2001, p. 173).
O Bastão representa o Universo como uma rede,
uma teia interligando todos os seres numa única realidade que se expressa
através da multiplicidade de formas existentes no Universo,
caleidoscopicamente. Podemos então dizer que cada ser, a partir de seu ponto de
vista e do lugar que ocupa, em seu momento existencial, na Roda da Vida (Roda
de Cura), está corporificando e espelhando um dos aspectos da realidade. Quando
nos disponibilizamos a interagir com esses diferentes aspectos, os integramos
em nossa consciência, am-
(pg. 128 do
livro)
pliando-a. Cada outro que encontramos, cada trabalho
expressivo ou corporal que realizamos, cada sonho ou imagem que configuramos,
se nos ilumina, através de um processo de espelhamento, personagens e paisagens
que nos habitam, promovendo a abertura de sulcos por onde nossa energia psíquica
pode fluir, regando nossas sementes (potenciais) e alimentando nosso
crescimento.
A confecção
do Bastão desperta sentimentos profundos, associados a uma sabedoria ancestral
que pode estar adormecida no interior de castelos rodeados de espinhos, como num
conto de fadas, mas que em seu sono nos sonha reis e rainhas de nosso próprio
reino, arquitetos e co-criadores de nosso destino como ser e como humanidade,
nos religando às nossas raízes arquetípicas. Vivenciar esse ritual, atualizado
e adaptado às nossas condições e necessidades atuais, ajuda-nos a resgatar elos
perdidos que trazem à tona um novo desenho em que o eu, o outro e o mundo se
integram e sintetizam, mantendo no entanto a sua singularidade, como que
formando os matizes que compõem um arco-íris. Além disso, traz às nossas vidas
a dimensão do sagrado, engendrando o respeito para com todas as formas de vida
que nos cercam e nos constituem como ser, num trabalho de ecologia profunda.
O bastão liga-se ao conjunto de símbolos relativos ao Eixo
do Mundo[3],
ao Centro, local de abertura a níveis de consciência transcendentes, ao plano
divino (permitindo a comunicação entre o homem e o plano espiritual). No Centro
encontram-se, alinhados num eixo vertical, os três níveis da existência: ctônio
(instintos), terrestre (consciência) e celeste (arquétipos). Temos no símbolo
do bastão a junção desses 3 níveis aos 4 elementos - ligados também aos 4 pontos cardeais, que se estendem
num eixo horizontal, caracterizando a realidade manifesta -, sendo o Centro o
ponto de interseção dessas 2 coordenadas, correspondendo ao número 7. O homem,
quem segura o Bastão, tem em sua constituição psíquica o entrelaçamento de
todos esses aspectos, sendo a expressão de sua
(pg. 129 do
livro)
integração e síntese. Esses 7 aspectos do Ser: terra, água,
fogo, ar, mineral, animal, vegetal são como os “nomes de Deus” (como diz Foster
Perry), e o homem traz todos eles em sua constituição, espelhando o Criador e
podendo igualmente espelhar-se na Criação. (Bernardo, 2001, p. 176)
O Bastão que Fala expressa ainda uma complexio oppositorum (conjunção de
opostos) ao relacionar amorosamente (com o coração) o falar (ativo, masculino)
e o ouvir (receptivo, feminino). Pode-se fazer uma analogia entre abrir-se para
ser tocado pela palavra do outro e o encontro amoroso, o que conjuga Logos e
Eros num movimento fecundo que está na base de nossa
criatividade. O caduceu de Hermes (símbolo da medicina), tem
duas serpentes – que representam os princípios sombrios e luminosos, femininos
e masculinos – entrelaçadas ao seu redor.
“Eu sou um outro você e você é um outro de mim”
(ensinamento maia)
Há algumas vivências corporais que favorecem o
trabalho com a questão do espelhamento. Numa delas, bastante conhecida,
forma-se uma roda e todos começam a dançar. Então uma pessoa se coloca no meio
da roda e todos reproduzem os seus movimentos, e as pessoas vão se alternando
no centro até que todos tenham tido a oportunidade de ser espelho do outro e de
ser espelhado pelo outro. Isso pode ser feito em duplas também. Quando trabalho
com duplas, começo com todos os participantes explorando o espaço da sala de
olhos fechados, andando por ela. Aos poucos, as pessoas são orientadas a
interagirem através de alguma espécie de toque com quem forem esbarrando, até
que encontrem alguém para ser seu parceiro, e começam uma dança com as mãos
tocando-se, ainda de olhos fechados. Num determinado momento, peço que abram os
olhos, afastem as mãos e que um seja o espelho do outro nessa dança. Após algum
tempo, peço que invertam seus papéis. Essa vivência pode ainda ser
(pg. 130 do
livro)
seguida de alguma atividade expressiva, como a confecção de
uma moldura para um espelho.
O tema do espelho nos
remete ao mito grego de Narciso e Eco. Narciso era filho de uma ninfa, Liríope,
e do deus do rio, Céfiso. O rio pode ser simbolicamente associado à correnteza
da vida, à nossa energia vital e ao fluxo de nossas emoções. Junito S. Brandão
(autor de vários livros sobre mitologia), numa palestra que deu sobre o
assunto, disse que: “o rio, a água, possui uma grande energia, sobretudo uma
energia sexual”, e Liríope não o queria porque ela queria o deus Pan – a
palavra Pan quer dizer “tudo”, e Pan, segundo Brandão, é símbolo da fertilidade
universal (daí vem a palavra pânico, associada ao medo do fluxo poderoso e
muitas vezes incontrolável dessa energia).
Liríope passeava distraída
pelas margens de Céfiso e ele arrastou-a, apaixonado por ela. E quantas vezes
não somos "arrastados" pela vida para situações que não escolhemos,
mas que nos escolheram, e descobrimos então que a vida nos reservava presentes,
dádivas que, sem dúvida, também cobram o seu preço... Foi o que aconteceu com
Liríope, que foi presenteada com uma criança linda, de uma beleza ímpar que
afrontava os deuses – Narciso. Isso assustou Liríope, porque ela sabia que os
deuses castigavam quem lhes excedesse em beleza, e por isso ela foi se
aconselhar com o vidente Tirésias. E Tirésias também tem a sua história, o seu
mito, que não vou falar aqui, mas é importante saber que ele tinha o dom da
mantéia (adivinhação) porque ele "não enxergava prá fora, ele enxergava
prá dentro, e todo adivinho grego era cego" (Brandão). Liríope perguntou a
ele se Narciso viveria longos anos, e ele respondeu: "se ele não se vir,
se ele não se olhar, se ele não se contemplar"... E por isso Narciso ainda
não se conhecia, nunca tinha olhado para sua imagem, e quando se viu no lago,
se apaixonou pelo outro que ele via, e que desconhecia... esse outro que ele é
de si mesmo, como os nossos outros eus que nos habitam e nos permitem
reconhecer outros também fora de nós. É o início do amor próprio, condição para
poder haver e nascer também o amor pelos outros de nós. Portanto, o que
(pg. 131 do
livro)
há de errado com Narciso? Antes de falar
sobre isso, porque essa resposta demanda o conhecimento da importância de Eco
nesse mito, vamos ver o que aconteceu com ela nesse meio tempo.
Eco era uma ninfa
extrovertida, falante e comunicativa, e Zeus pediu-lhe para distrair Hera, sua
esposa sempre preocupada em vigiar os seus passos para que não a traísse,
enquanto Zeus dava suas escapadas para fertilizar outras mulheres, já que ele
era o representante do poder fecundante masculino, como rei que era do Olimpo.
Quando Hera descobriu esse acordo entre os dois, castigou Eco, condenando-a ao
pior dos castigos, tirou-lhe o dom do Logos, da palavra, do verbo, condenando-a
a somente repetir os finais das frases que os outros falavam.
Assim, posto isso, vamos ver o que aconteceu com
o nosso casal... Narciso era muito introvertido, "na dele". Certa vez
ele caçava com amigos num bosque, e Eco, apaixonada perdidamente por ele (como
aliás muitas outras ninfas), o seguia, mas não podia dirigir-se a ele porque
não podia falar, procurando sem sucesso chamar sua atenção - pois se Narciso
não se conhecia, não podia também reconhecer o outro, ecoá-lo: a noção de eu e
de outro nascem ao mesmo tempo, os opostos se pedem e se necessitam para que o
nosso desenvolvimento aconteça. Pois bem, estão eles no bosque, num dia muito
quente, quando Narciso se perde de seus companheiros, e grita para eles:
"Unamo-nos!". Eco pensou que ele falava com ela e correu em sua
direção, sendo repudiada por ele com frieza, e entristecida definhou ali mesmo,
transformando-se em pedra, em caverna, num grande vazio... As outras ninfas,
revoltadas com a rejeição de Narciso a Eco e com o que tinha acontecido com
ela, recorreram à deusa Nêmesis, pedindo vingança. E como Nêmesis (deusa da
justiça distributiva, donde decorrem os castigos pelas injustiças praticadas)
não tolerava que uma mulher sofresse pela repulsa de um homem, condenou Narciso
a amar um amor impossível. Como Narciso estava com sede, debruçou-se sobre um
rio para beber água, e deparou-se com sua imagem – lembrando aqui do que
Tirésias havia dito sobre ele não se vir... – e então não conseguiu mais
(pg. 132 do
livro)
sair do local, deixou de se alimentar e ali morreu,
mergulhando em sua sombra, à procura de sua alma (e a palavra alma, reflexo,
espelho e psique são correlacionadas etimologicamente). Eco perdeu Logos, a
capacidade de reflexão e de auto-reflexão, e Narciso perdeu Eros, a capacidade
de se relacionar com o outro...
No outro dia, ao procurarem Narciso, encontraram
no local uma flor com o centro amarelo, cercado de pétalas brancas. A flor
Narciso é muito usada na Grécia para o culto dos mortos, para cobrir as
sepulturas, e a morte é como um grande sono, um grande torpor que nos leva a
penetrar em outras dimensões da existência, de acordo com essa visão simbólica.
E a flor narciso cumpre sua função iniciática também em outro mito, no mito de
Perséfone e Deméter (deusa da fertilidade, da terra cultivada), quando
Perséfone, ao colher uma flor de narciso, é raptada pelo rei do Hades (reino
dos mortos, das sementes, da força regeneradora e transformadora da
sexualidade), Plutão, separando-se de sua dependência com relação à sua mãe e
tornando-se mulher, iniciando-se nos mistérios femininos, transformando-se na
rainha do Hades. Deméter, ao conseguir que sua filha passasse 6 meses lá
embaixo com o marido (outono e inverno, quando a vida se recolhe para se
renovar, se reciclar, e renascer na primavera) e 6 meses com a mãe sobre a
terra (primavera e verão, quando Deméter cobre a terra com suas dádivas, com
flores e frutos, pois é a deusa da terra cultivada), ensina aos homens os
Mistérios de Elêusis, iniciando-os nos mistérios da criação, da semente que se
transforma em grão – do processo de transformação que envolve nascimento –
morte - renascimento, o que garante a fertilidade da terra e de todas as nossas
relações – e Deméter então ensina os homens a cultivar a terra, a trabalhar
conscientemente com o seu potencial criador.
Jung nos ensinou que, do
ponto de vista simbólico, os personagens dos mitos e contos de fadas podem ser
vistos como representantes de forças que atuam em nossa psique coletiva, e
portanto fazem parte da constituição de nossa natureza humana e da natureza
plane-
(pg. 133 do
livro)
tária (de acordo com o ponto de vista da
psicologia simbólica, psique e mundo são aspectos diferentes de uma mesma
realidade multifacetada, que se manifesta através de infinitas faces). Por
isso, o conhecimento do mundo e da natureza à nossa volta tem como contraponto
e complemento indissociável o auto-conhecimento. E, sendo forças, essas forças
não são "boas" nem "más", tudo depende do direcionamento
que damos a elas, de como as atualizamos e contextualizamos, de como nos
relacionamos com elas. Sendo assim, Eco pode representar a capacidade de ecoar
o outro, de se colocar no lugar do outro, como uma mãe "suficientemente
boa" ao cuidar de seu bebê. Sem a auto-reflexão e a busca do
auto-conhecimento, representada por Narciso, Eco se resseca, seu discurso
torna-se oco, vazio, petrificado e, consequentemente, estéril e sem vida,
repetindo fórmulas já consagradas, mas desgarradas de seu veio, como um corpo
desvinculado de sua alma. E há outro ponto a considerar aqui, com relação ao
narcisismo doentio presente em nossa época e cultura: Narciso não se conhecia,
não sabia que o outro que viu no espelho era ele mesmo, não tinha até então
tido a oportunidade de se espelhar em ninguém. A falta do auto-conhecimento
desemboca na incapacidade de reconhecimento do outro e de sua importância em
nossas vidas, e por outro lado precisamos sempre do outro para nos espelhar e
para nos descobrirmos. Quanto menos consciência temos de nossas sombras, de
nossas limitações e capacidades, de nossa interioridade (quanto menos nos
olhamos no espelho), mais as projetamos no outro, e menos capacidade temos
então de enxergá-lo e de considerar o seu ponto de vista – quanto menos amor
próprio, menos amor ao próximo, e vice-versa. A criança pequena é chamada de
narcisista porque está misturada com o outro e com o mundo, ainda não se
diferenciou, ainda não estruturou uma noção de eu e de outro, e não porque não
quer saber do outro, por isso o egoísmo é quase sempre uma conseqüência da
auto-ignorância, e o preconceito idem, da falta de contato com os outros que
nos habitam, dentro e fora de nós, falta de profundidade do olhar...
(pg. 134 do
livro)
Assim como Narciso precisa de
Eco para não perder-se em si mesmo, Eco dele necessita para não perder-se na
multiplicidade do mundo, para não perder o contato com a unidade inconsciente
(Self) que fertiliza o solo psíquico, trazendo a possibilidade de renovação.
“Mas é de noite, quando
a alma vigia
e um olho, que não o do
corpo, espia
(...)
A humilhação me prostra,
Meia-noite, meio da vida
a pino,
A cova, a mãe, o grande
escuro é Deus
E forceja por nascer da
minha carne.
(Adélia Prado)
O espelho aparece ainda no mito de Dioniso, o
deus grego do êxtase, do entusiasmo e da transformação, ligado ao teatro e às
máscaras. Quando era criança, foi distraído pelos Titãs, os quais polvilharam
seus rostos com pó de gesso para disfarçarem-se, com brinquedos místicos:
ossinhos, chocalhos e um espelho. Os Titãs estavam a mando de Hera, que queria
exterminar Dioniso por ser filho de uma das uniões ilícitas de Zeus. Ao se
olhar no espelho, Dioniso tornou-se presa fácil, pois sua alma foi capturada
pela sua imagem refletida. Ele foi então desmembrado pelos Titãs, que
cozinharam seus pedaços num caldeirão e o comeram. Mas seu coração foi salvo a
tempo por Zeus, que o deu a Sêmele para engoli-lo, o que fez com que ela
engravidasse do segundo Dioniso, renascido. (Brandão, 1987).
Podemos fazer uma analogia entre esse mito e o
que acontece nas nossas relações: resgatamos nossos fragmentos espalhados pelo
mundo e projetados muitas vezes no outro ao reconhecer e dar voz aos outros de
nós, reunindo-os em nosso caldeirão, em nosso espaço sagrado, vaso de nossa
alquimia interior, retirando nossas projeções, iluminando nossos potenciais e
integrando esses conteúdos à nossa personalidade, tornando-nos mais inteiros.
Isso desencadeia um pro-
(pg. 135 do
livro)
cesso de transformação que desemboca num renascimento a
partir do coração, órgão que simboliza a reunião amorosa e síntese harmoniosa
entre os opostos. E um recurso que facilita esse processo é a confecção de
máscaras, criação de personagens e dramatização, trabalhando com a mitologia
criativa.
Trazer
nossa psicomitologia pessoal à tona é o processo de lembrar e recordar a
sabedoria e o amor que nos são inerentes e naturais, por meio de nossos sonhos
acordados ou mito. Através das imagens e da ‘sessão de jornada’, a psique fará
refletir de volta a orientação ou o trabalho de cura de que necessitamos.
(Arrien, 1997, p. 54).
A primeira vez que confeccionei
uma máscara foi numa aula com Laura Villares (IPUSP), em que modelamos um rosto
em argila, com os olhos fechados, e depois, com tiras de jornal embebidos em
cola, construímos uma máscara, a pintamos e dramatizamos. (Freitas, 1995). Anos
depois, ao trabalhar como Psicóloga da Saúde (PMSP) num Centro de Convivência e
Cooperativa, onde coordenava, em equipe multiprofissional Oficinas de
Criatividade com todas as faixas etárias (Bernardo, 1994), aprendi a
confeccionar máscaras do próprio rosto com atadura gessada. Passei então a
utilizar a confecção de máscaras, criação de personagens e sua dramatização
como recurso arteterapêutico.
Num dos grupos com que fiz esse trabalho,
iniciamos com um relaxamento em que cada um se imaginava como saindo de um
grande mar e se transformando em pedra, planta, animal, passando assim pelos
três reinos (que correspondem a aspectos da nossa vida psíquica). Retornando do
relaxamento (em que os participantes estavam deitados em colchonetes), ainda de
olhos fechados, cada um procurou um parceiro. Os parceiros sentaram-se de
frente um para o outro, tocando-se e reconhecendo-se através das mãos,
compartilhando, em seguida, em duplas e depois com todo o grupo, seus
sentimentos e sensações com relação à vivência.
Sobre a
formação de símbolos e sua relação com a utilização das mãos, Von Franz (1992)
conta que Jung utilizava-se de recursos artísticos – pin-
(pg. 136 do
livro)
tava, desenhava mandalas, esculpia na pedra, etc. – para
ajudá-lo a clarear suas pesquisas sobre o inconsciente e suas próprias questões
existenciais.
Ao tocar as
mãos do outro, desencadeou-se no grupo citado acima um diálogo sem palavras
permeado por sentimentos e sensações. Esse olhar com as mãos trouxe à tona a
dimensão amorosa da experiência, e no final todos se abraçaram, chorando
emocionados, como um grande coração pulsando e redescobrindo a alegria de estar
junto, em relação. Fizemos então um intervalo, e na volta cada dupla
confeccionou a máscara em gesso do rosto de seu parceiro. Fizemos o fechamento
dessa vivência com uma dança cantada circular indígena.
A
máscara em gesso do próprio rosto o fossiliza, dando-lhe uma nova roupagem e
trazendo à luz aspectos não conscientes que poderão ser integrados à
consciência, ampliando-a. Brandão (1987) comenta que o pó de gesso, no mito de
Dioniso, cumpre uma função iniciática, marcando a sua passagem para a vida
adulta. Ao assemelharem-se a fantasmas, os rostos com pó de gesso expressam uma
morte simbólica. O contato com o outro - com nossos fantasmas internos que
vagueiam pelos nossos umbrais, esperando por sua redenção e reintegração na
correnteza da vida, como ovelhas desgarradas de seu rebanho - nos transforma,
se puder ser fecundo, propiciando um novo olhar, mais amplo, mais integrado,
para si próprio e para o mundo.
Ao confeccionarmos uma
máscara, concretizamos (e toda concretização é um nascimento e uma morte
simultâneos) alguns desses aspectos banidos ou não reconhecidos de nossa
psique, transformando-os em nossos aliados, em matéria prima de novas
singularizações, dando-lhes voz e a oportunidade de dizerem a que vieram – uma
história, um mito. E aqui é importante lembrar que Dioniso era o deus das
máscaras e do teatro. Com isso descortinamos a possibilidade de abertura ao
diálogo interno, exercendo a alteridade e abrindo espaço para a troca com o
outro dentro e fora de nós. Vivenciamos nossos mundos parciais para podermos
nos reintegrar no coração do Universo, como centelhas de luz que compõem as
cons-
(pg. 137 do
livro)
telações, possuidores de mitologias
pessoais que interconectam-se com a eternidade, com as mitologias cosmológicas.
Isso nos disponibiliza para a experiência do Infinito, sem nos despedaçarmos
por ela[4],
pois é contida no contexto do ritual, de
um espaço protegido que funciona como um caldeirão que transformará os
fragmentos vivenciados em alimento que recompõe, numa nova ordem, a consciência
assim expandida, como nos rituais dionisíacos. (Bernardo, 2001).
Para o encontro seguinte, foi
pedido a cada membro do grupo que pintasse a sua máscara, inspirando-se num dos
4 elementos, e que criasse uma história para ela. Depois houve o momento da
dramatização desses personagens, de vestir a máscara, incorporá-la, e assim
olhar-se de dentro para fora, a partir do olhar de sua alma... A seguir
compartilhamos essa experiência, elaborando as questões trazidas por cada
participante.
...Olharemos
então para além de nossos olhos, seguindo a trilha
que se abre,
como um espelho, no centro de nossas pupilas.
Atravessaremos
eras, e tantas vezes morreremos e renasceremos,
que o suor de
nossos corpos em quase combustão
lavará e
batizará nossas almas que, assim renovadas,
se
reencontrarão no altar
que nos farão
homem e mulher numa só carne.
Acontecerá
assim, por acontecer,
porque é hora
de caírem os véus, é tempo de resgatar a integridade,
é momento, que
se impõe como necessidade,
de se unirem as
pontas do arco que nos lançarão, como setas,
a um novo
patamar de consciência.
E digo mais: se
é para ser assim, que seja já!”
(Trecho de
“Hieros Gamos”, poema de minha autoria, 1999)
(pg. 180 do
livro)
O mito de Dioniso pode ser
associado ao arcano “O Louco” do Tarô, o qual expressa a abertura para o
insondado, a capacidade de mudança, o salto no abismo, o mergulho criativo no
inconsciente de onde se pode emergir renovado, e não raro com alguma de suas
preciosidades em mãos (e com elas vamos formando nossos tesouros...). Ele
representa a experiência do unus mundus.
Sobre essa dimensão da experiência humana Jaffé (1988), citando Neumann,
comenta:
Aquilo
que Neumann chamava de “a grande experiência” era a “abertura através do
simplesmente pessoal e dos mundos parciais, para algo vivo, que constitui o
mundo transpessoal da realidade” (...) Essa abertura pode ser vivida pelo homem
chamado, na linguagem corrente, de criativo – como, por exemplo, o artista -,
através da “inspiração”. (p. 82-83).
Em concepções de várias culturas encontramos uma
base única para a Criação, e sua multiplicidade pode ser vista como as
diferentes roupagens do Ser, a expressão de seus infinitos rostos ou como os
diferentes mantos com os quais a Energia Divina primordial se reveste em sua
eterna dança Cósmica. E como a Criação não pára, estamos participando o tempo
todo desse continuum existencial
através do qual moldamos o mundo e somos moldados pelas relações que
estabelecemos com ele. A renovação e regeneração periódicas fazem parte desse
coagular e destilar contínuos, nesse intercâmbio energético entre matéria e
espírito, corpo e alma, que se realiza como um ato amoroso, um hieros gamos que consiste num processo
de transformação que regula a vida psíquica e a Natureza em todos os seus
reinos. Sendo assim, até os nossos pensamentos mais sutis possuem um peso e
podem fazer vibrar essa grande teia da existência, e até uma pedra, com sua
massa inerte, possui seus “sonhos de pedra”, um potencial de vir a ser latente,
um sopro de vida que faz moverem-se suas partículas.
Vocês
devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avós.
Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida com as
vidas de nosso povo. Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas: que a
terra é nossa mãe. Tudo o
(pg. 139 do
livro)
que
acontecer à terra, acontecerá aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo,
estão cuspindo em si mesmos. Isto sabemos: a terra não pertence ao homem; o
homem pertence à terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o
sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo. O que ocorrer com a terra
recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é
simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo.
(www. cetesb.br/Indio/indio 1.htm, discurso).
O “fio da vida” relaciona-se ao destino, tecido
pelas Moiras no momento do nascimento de
uma criança: Cloto (fiar) é quem segura as linhas da vida, Láquesis
(sortear) é quem sorteia o fio e Átrpos (a que não volta atrás) é quem o corta,
trazendo a morte. A atividade de tecer é, em vários mitos e culturas, um
atributo do Feminino, e poderíamos dizer que a mãe tece em seu útero o corpo da
criança (com o sangue – fogo interior), as vestes de uma nova vida. Da mesma forma, inúmeras são as analogias
entre o Cosmo e a teia, a trama, a rede e o tecido da vida que congrega toda a
Criação. A esse respeito, Eliade (1991) comenta que, para os indianos, “o ar
(...) ‘teceu’ o Universo, ligando, como
que por um fio, este mundo ao outro mundo e todos os seres (...) da mesma forma
que um sopro (prana) ‘teceu’ a vida humana.” (p.112).
Em alguns mitos, o mundo
surgiu a partir do umbigo de Deus, como a substância da teia da aranha sai de
si própria, ou nasceu das partes desmembradas do Antropos – o Homem Primordial,
ou das partes de algum deus ou deusa. Do Um surgiram todas as coisas, por um
processo de diferenciação de seus infinitos aspectos, que lançaram-se para fora
de Si como Sua “cria”, sua partogênese, talvez para que pudesse tomar consciência
de Si próprio, olhando-Se através de Seus filhos.
“ ...
Quando o vermelho e o azul se mesclam, no entardecer,
Íris
aquarela o céu com as cores do seu arco.
Nesse
momento, corro para o mar
(pg. 140 do
livro)
para ver
se me alcanço e me alço de volta das águas,
como que
ressuscitando de mim Osíris, o amante interno,
com quem
me devolverei à inteireza de ser corpo e alma,
pois Deus
está mesmo em toda a parte...”
(trecho de
“Sóis e Luas”, poema de minha autoria, 1998)
O mito
egípcio de Ísis e Osíris nos conta que no início só havia Atum, que desejando
não estar mais só, pronunciou as primeiras palavras, criando dois seres: o Ar e
a Umidade (a Água). Esses dois elementos fundiram-se em sua paixão mútua, e
desse encontro nasceu a Terra (Geb) e o Céu (Nut), que também apaixonaram-se um
pelo outro. O seu amor fez com que as montanhas crescessem, e o Céu desceu
sobre a Terra, abraçando-a. Desse encontro nasceu o Sol (Ra), dourado, e sua
irmã, a Lua (Thoth) de prata. Os dois irmãos enciumaram-se de sua mãe quando
ela engravidou de novo de seu pai, e disseram um para o outro: “separemos os
dois”, e assim o fizeram... A Terra
gritou, houve trovão e relâmpagos, e em seu útero estavam Ísis e Osíris, além
de mais três irmãos. O primeiro a vir ao mundo foi Osíris, que recebeu as
terras pretas, férteis, seguido de Seth (o rebelde, o que nunca está
satisfeito, a paixão caótica e a destrutividade), a quem foram dadas as terras
vermelhas, onde nada cresce e proliferam os animais selvagens – terra para a
caça. O terceiro filho foi Hórus, o que nascerá duas vezes, a quarta foi Ísis,
que era como o Céu na Terra, em forma de mulher, tamanha sua beleza e doçura.
Foi ela quem ensinou as mulheres a trançar seus cabelos, a tecer suas roupas, a
se perfumar, a passar romã nos lábios e a cuidar do próprio corpo, enquanto
Osíris ensinou os homens a cultivar a terra. A
quinta a nascer foi Néftis, a irmã de Ísis que veio a casar-se com Seth. Ísis
casou-se com Osíris, e o palácio onde moravam era de ouro e prata, com as
paredes repletas de diamantes.
Seth,
enciumado do irmão e almejando o seu trono, o encerra num caixão e o lança no
Nilo. Ísis consegue resgatar o corpo de Osíris
(pg. 141 do
livro)
e tenta ressuscitá-lo, criando um fogo e dançando ao redor
do fogo dias e noites, até que os olhos de Osíris se abrem e ela tenta trazê-lo
de volta. Ela o deixa sobre o altar por uma noite, enquanto sai para pedir
ajuda aos seus irmãos. Seth, que caçava naquela noite, encontra Osíris e o
corta em 14 pedaços, colocando-os num saco que joga no Nilo. Pressentindo o que
acontecia com Osíris, Ísis sai com os irmãos à procura do marido, gritando...
Acha as suas pernas, os seus braços, as suas orelhas... mas um enorme peixe
acaba por engolir o pênis de Osíris, a décima quarta parte de seu corpo
esquartejado. Diante disso, Ísis constrói um pênis de madeira sagrada para
Osíris, que acorda, e desde então vive na terra dos mortos.
Todas as noites, Ísis faz amor com Osíris, e em
sua honra constrói templos por todo o Egito. Ísis anda pelos templos ensinando
aos homens a espiritualidade - como acordar Osíris. Querendo conhecer o pai,
Hórus transforma-se em falcão, e durante o dia voa cada vez mais alto buscando
pelo pai, com quem conversava às noites, em sua tumba. Osíris vai lhe ensinando
a lutar, a ser um guerreiro, a justiça e a agricultura. Quando já está pronto
para seguir seu caminho com segurança e autonomia, o pai o deixa, e com o disco
solar à sua frente, Hórus é invejado por Seth, seguindo-se daí uma disputa
entre ambos (que durou 80 anos), até que Ísis tira Seth da Terra, dando-lhe uma
carroça na qual ele carrega o Sol, originando o tempo. (versão do mito contada por Foster Perry em
um Workshop que coordenou no Brasil em novembro de 2000, do qual participei).
Os
egípcios haviam-se impressionado com a mancha estranha que existe sob o olho do
falcão, olho que tudo vê; e, em torno do olho de Hórus desenvolve-se toda uma
simbólica de fecundidade universal ... Em todas as tradições egípcias o olho se
revela como sendo de natureza solar e ígnea, fonte de luz, de conhecimento e de
fecundidade.(Chevalier e Gheerbrant, 1993, p. 655.
O tema do despedaçamento e reconstituição
acompanhada de um renascimento, que já vimos no mito de Dioniso, aparece
novamente aqui.. Dessa forma, algo novo é acrescentado e integrado ao corpo e à
(pg. 142 do
livro)
personalidade, e no caso de Osíris isso está representado
através de seu novo pênis, simbolizando a renovação da fertilidade (de seu
potencial criador) concretizada em seu filho Hórus. Esse tema também é
encontrado no xamanismo: são colocados cristais ou metais no novo corpo do
iniciado, durante sua morte simbólica, da qual renasce, transformado em xamã e
dotado de poderes de cura. (Eliade, 1998).
Podemos dizer que, quando algo morre para a
consciência, é deflagrada a sua busca, que se configura na busca do sonho, do
significado, da própria alma, impulsionando o desenvolvimento e a atualização
de potenciais. No mito de Eros e Psiqué, ela tem como sua última tarefa para
reencontrar Eros entrar no Hades (no reino dos mortos, no inconsciente) e
trazer para Afrodite a caixa que contém a beleza imortal, que também é o sono
eterno – a morte, a perda momentânea de consciência – do qual é despertada por
Eros com suas flechas, emergindo como Psiqué casada com Eros. Nesse mito, uma
mortal ascende ao reino divino, enquanto a força arquetípica que Eros
representa é humanizada, podendo estar a serviço do relacionamento.
Dar corpo e voz aos nossos personagens internos,
através da utilização de recursos vivenciais e expressivos, desenvolve a nossa
intuição (que nos permite olhar a semente e ver nela a árvore) e a nossa
capacidade de olharmo-nos como outros de nós mesmos, abrindo assim o caminho
para a realização de nossos potencias e sua integração à nossa consciência,
expandindo-a. Isso nos coloca em contato com “mundos dentro de mundos”, com a
miríade de aspectos presentes em nossas vidas, na Natureza e em nosso universo
interior.
Claudel
dizia que há um certo azul do mar tão azul que somente o sangue é mais
vermelho. Valéry falava no secreto negrume do leite que só é dado por sua
brancura. Proust falava numa pequena frase musical feita de doçura retrátil e
friorenta. Merleau-Ponty fala num olho que apalpa cores e superfícies, num
pensar que tateia idéias para encontrar uma direção de pensamento, numa idéia
sensível que nos possui mais do que a possuímos, como o pintor que se sente
visto pelas coisas enquanto as vê para pintá-las. (Chauí, apud Ferreira Santos,
2004, p. 114)
(pg. 143 do
livro)
A
reversibilidade desse olho tateante que nos vê, desse silêncio que nos diz,
desse movimento que nos detém está também incrustada na obra estética.
(Ferreira Santos, 2004., p. 114)
Talvez se passássemos o Bastão para o outro –
dentro e fora de nós - sempre que atingíssemos nossas fronteiras, delimitadas
pela parcialidade de nosso campo de visão, pela unilateralidade de nossa
consciência, que necessita do contato com as profundezas oceânicas
inconscientes para equilibrar-se e ampliar-se, poderíamos atingir um nível de
integração que começasse a curar as feridas oriundas do “pecado original” de
acreditar-se separado do todo. Se o conhecimento do mundo se conecta ao
auto-conhecimento e à totalidade da vida, pode transmutar-se então em sabedoria
orvalhando sobre nosso chão, germinando nossas sementes criativas e nos
projetando para novas dimensões existenciais, ressuscitando os nossos mortos,
renascidos no trigo com o qual poderemos fazer nossos pães, alimentando-nos a
partir da fertilidade de nosso solo ancestral (da sabedoria da psique), e
criando alma (Psiqué) conjugada a um corpo (Eros) que se revitaliza através de
sucessivas transformações... Mas isso só é possível se contarmos com as bênçãos
de Ísis, a grande iniciadora dos homens nos mistérios da vida, da morte e da
transcendência - e da harmonia, da beleza e da criatividade...
Com o encontro da ancestralidade que nos
constitui neste momento fugidio em que nos instalamos na trajetória do
amanhecer da divindade humana ao poente da humanidade divina de quem, fiel ao
Criador – seja ele quem for -, continua a obra da criação: música e poesia,
movimento e imagem...
Criação que nos faz humanos. Divinamente humanos
em nossa hesitação... Humanamente divinos em nossa destinação de Ser.
Aqui a jornada interpretativa mitohermenêutica revela o
sentido da compreensão: começo, meio e fim de nós mesmos. Passado, presente e
futuro no fio de nossas narrativas... Com o outro no mundo concreto das
pessoas...
(pg. 144 do
livro)
Isto se ensina?
Não. Se em-sina...
Com o testemunho autêntico de nossa presença
humana, ajudando o outro a colocar-se em sua própria sina, a cumprir a sua
própria destinação...
Mistério?
Sim. Isso não se esclarece... se profundiza.
(Ferreira Santos, 2004, p. 186)
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Dados da autora:
Patrícia Pinna
Bernardo - Pós-doutoranda
em Educação (FEUSP), Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
(USP), Mestre em Psicologia Clínica (PUC – SP), Psicóloga (USP) e
Arte-educadora (FAAP), Psicoterapeuta e Arteterapeuta de crianças, adolescentes
e adultos desde 1983. Coordenadora de Oficinas de Criatividade (consultório,
escolas, empresas e eventos), Supervisora de atendimentos clínicos e
institucionais, Coordenadora de Workshops, Cursos e Grupos de Estudos sobre
Arteterapia, Mitologia Criativa e Psicologia Junguiana, Professora
Universitária (Psicologia, Musicoterapia, Pedagogia, Artes Plásticas),
Coordenadora e Professora da Pós Graduação em Arteterapia da UNIP. Site: www.patriciapinna.psc.br E-mail: pat.pinna@uol.com.br Tel (consultório): (11) 3862-2411
[1] em parceria com Walmir Cedotti, outro
participante do workshop de Oaxaca.
3 esse curso está detalhado e analisado em minha
tese de doutorado
[3] ao qual o coração também está relacionado.
[4] que é o que acontece na “loucura patológica”,
sendo de fato um risco para a consciência frágil diante das experiências
numinosas, em contraposição à “loucura sagrada”, que possuía “o valor de uma
experiência religiosa” (Brandão, 1987, p. 137).