Dados para citação:
BERNARDO, Patrícia Pinna – O Medo do Novo e a Renovação
Possível – a criatividade no contexto escolar, in: Cadernos - Centro
Universitário São camilo, São Paulo, v. 11, n.o 3 p. 64-70, jul./set. 2005.
Pg 64 da revista
O Medo do Novo e a
Renovação Possível
a criatividade no
contexto escolar
The fear of novelty and possible renewal: Creativity
in the school context
Autora: Prof Dra Patrícia Pinna Bernardo[1]
RESUMO
A partir de uma visão mitohermenêutica, a autora tece
considerações sobre como a escola lida com as demandas criativas de seus
alunos, freqüentemente tentando enquadrá-las ao invés de permitir sua
elaboração, o que poderia desembocar numa renovação de valores e de suas
estratégias pedagógicas. No embate entre a instituição, com suas normas e
regras já estabelecidas e consolidadas, e as necessidades de desenvolvimento de
sua clientela, torna-se necessário e vital repensar como as polaridades
professor-aluno, ensinar-aprender, instituinte-instituído estão sendo aí
relacionadas. Diante dessa questão, a autora sugere a criação de espaços de
diálogo e troca fecunda entre essas instâncias, mediados pela função simbólica,
ao invés de se tentar estancar os apelos de transformação que se fazem
presentes através das divergências e dissonâncias. Dessa forma, se poderia
prevenir a esteriotipia e o abuso de poder nas relações escolares, através de
uma postura respeitosa diante dos diversos pontos de vista, valorizando-se as
diferenças como fonte de troca, aprendizado e crescimento mútuo.
Descritores: Desenvolvimento da criatividade; contexto
escolar
Pg 65 da revista
A educação, na visão corrente,
consiste em experimentar e transformar a criança no tipo de adulto da sociedade
à qual pertence. Enquanto que, para mim, a educação consiste em fazer criadores
... inventores, inovadores, não conformistas ... Há sempre um domínio no qual o
indivíduo pode ser criador. (J. Piaget)
Conta a cosmogonia grega que no princípio
era o Ovo do Mundo, composto por Úrano-Pai-Céu e Géia-Mãe-Terra, unidos em seu
abraço nupcial. De seu casamento sagrado - hieros
gamos - nasciam filhos que, no entanto, eram devolvidos ao interior de sua
mãe, pois Úrano temia ser destituído de seu poder. Decidida a libertar seus
filhos, Géia dá uma foice a seu filho caçula, Crono, que separa o Céu da Terra,
e em sua luta contra o pai corta-lhe os testículos e os lança ao mar. Da espuma
saída de seu membro divino nasceu Afrodite, deusa do amor, da beleza e da
fecundidade. Ao assumir o poder, Crono (que casou-se com Réia, a energia
contida no interior da terra) torna-se um déspota pior que seu pai, pelo medo
de ser destronado por um de seus filhos. Por isso, engolia seus filhos quando
estes nasciam, não permitindo que tivessem uma existência própria. Réia resolve
interromper esse processo e, grávida de Zeus, recolhe-se na Ilha de Creta até
dar à luz. Géia acolhe e esconde seu filho, enquanto Réia dá a Crono uma pedra,
envolvida em panos, para engolir em lugar
do recém-nascido. Ao atingir a idade adulta, Zeus vence o pai, fazendo ainda
com que ele vomitasse de volta seus irmãos. Crono, destronado, refugia-se em
Ausônia, recebendo o nome de Saturno, transformando-se num velho sábio que dá
bons conselhos aos homens, favorecendo a paz, a liberdade, a fraternidade e a
colheita abundante. (Brandão, 1986).
... Cronos-Saturno torna-se um deus da
agricultura que reina sobre os homens,
ensinando-lhes as artes do cultivo depois
de derrubado e forçado a vomitar os filhos que engoliu. A semente que morre é a
que frutifica; a foice, símbolo da morte, torna-se o instrumento que acolhe os
frutos e o alimento. (Vitale, 1979, p. 33).
O novo - recém-nascido - denuncia
nossa própria fragilidade ao lidar com realidades ainda não “dizíveis”, não
categorizadas pela consciência. Procura-se no recém-chegado (puer) reflexos do
visível e já conhecido (senex), mas é justamente a estranheza que nos causa, o
impacto de sua presença enigmática, que nos prepara para a ruptura com as estereotipias,
abrindo sulcos por onde podem escoar os ecos de uma vida que pulsa e pede
passagem. O novo assusta por aproximar os opostos morte-vida: o destronamento
de Crono é concomitante à geração e nascimento de seus filhos. É o futuro
presentificado, anunciando-se e trazendo o desmanchamento do passado que lhe
deu origem. O minuto seguinte ao mesmo tempo exclui – retai – e engloba –
expande – o minuto atual. Paradoxo. Engolir os filhos é então como uma
tentativa de se apossar do tempo, tentativa vã: congelar, estancar, aprisionar,
controlar – podem trazer a ilusão de totalidade, de completude, ao preço de ser
capturado pelas próprias ansiedades e o tempo dobrar-se sobre si mesmo, numa
auto-fagia, como ácido corrosivo...
A
criança e o jovem materializam em seu corpo e expressam através de
sua plasticidade
psíquica o estar em trans-formação, e o que é parte de um processo vital é
muitas vezes vivenciado pelas famílias e instituições educacionais - pelas
subjetividades envolvidas no processo de subjetivação dessas crianças e jovens
- como deficiências a serem supridas, conteúdos a serem transmitidos,
tendências a serem canalizadas, etc., como um movimento que deve desembocar e
ambientar-se num território definido e conhecido previamente. Mas enquanto a família
e a escola movimentam-se freqüentemente na direção do enquadramento dessas
forças criativas, a criança e o jovem trazem à tona o seu potencial liberatório
e a necessidade de elaborá-las. Não há então estratégia pedagógica instituída
que não acabe deparando-se com sua própria falência e necessidade de abertura
ao instituinte, à potência, à possibilidade de renovação. E é justamente no
momento da falência que se torna possível repensar o processo de formação da
subjetividade da criança e do
Pg 66 da revista
jovem e seu entrelaçamento com a
família, a escola e a comunidade em que vive. Como falo em meu artigo: Do
Caldeirão de Sementes à Harpa Encantada:
A bruxa do conto
“João e Maria” gostava de comer crianças, assim como o gigante de “João e o
Pé-de-Feijão”. Até as mães mais carinhosas não resistem a dar mordidelas em
seus corpos roliços e rechonchudos. Elas exalam um encanto e frescor de manhã
nascente. Concretizam e tornam incontestavelmente presente o mistério da
transformação, tão próximas estão do caldeirão fervilhante de sementes que os
psicólogos chamam de inconsciente e que os religiosos chamam de reino divino.
Assamos e
comemos nossas crianças quando, como gigantes insensíveis ou bruxas
prepotentes, buscamos aplacar e abafar o apelo e a urgência de renovação.
Melhor habitar territórios conhecidos a se aventurar por “mares nunca antes
navegados”. Pelo menos é isso que fazemos quando instituímos, diante das
diferenças, formas aculturadas de antropofagia (classes especiais, manicômios e
todo o tipo de mecanismos de exclusão).
No entanto, é
possível reverter esse processo e colocar o “caldeirão da bruxa” a serviço da
criação de um espaço que seja propiciador e continente à emergência e
elaboração das questões e necessidades de desenvolvimento e participação social
dessas crianças. (1999, p. 220-221).
Assamos e
comemos as nossas crianças, tentando estancar o apelo de renovação, quando não
nos disponibilizamos a rever e questionar nossas crenças e atitudes perante o
outro e a vida como um todo (a nos desterritorializar), não nos dando conta de
que a existência significativa é como um rio que, em seu constante fluir,
fertiliza suas margens. Só há um meio de entrar em contato com o novo sem
devorá-lo ou ser devorado por ele: tornando-se ventre capaz de acolher,
alimentar e amalgamar os desígnios de novas possibilidades de vir-a-ser que se
impõem como necessidade ao longo de nosso desenvolvimento. Para isso, torna-se
imprescindível ir além da dicotomia entre as polaridades (aluno-professor,
ensinar-aprender, criança-adulto, pensar-fazer, subjetivo-objetivo,
indivíduo-sociedade, etc.), podendo ver e pensar esses pares de opostos como
face e dorso de uma mesma realidade multifacetada que revela, através da
diversidade, a sua riqueza e pujança existencial. No contexto escolar, pode-se
e deve-se possibilitar a mediação e o diálogo entre essas instâncias, tanto
intra como inter-grupos (alunos, professores, pais, funcionários, coordenação),
intermediando e promovendo as possibilidades de troca significativa entre esses
diversos grupos, viabilizando uma prática fundada numa visão crítica, e na
consideração da complexidade inerente à própria condição humana, possibilitando
a criação de vínculos frutíferos entre a família, a escola e a comunidade. Para
tanto, é imprescindível a criação de condições para a expressão e elaboração
dos conteúdos simbólicos que se insinuam por entre as frestas da instituição,
escorrendo pelos seus entremeios, falando-nos através do “sussurro de suas
paredes”, do que insiste em não se comportar de acordo com o previsto, do que
definitivamente não se enquadra e sai do controle, abrindo então espaço para o
movimento de renovação possível – para ir além do medo – tendo o cuidado de não
perder de vista o movimento do tempo e suas metamorfoses.
Podemos
pensar nos dispositivos de controle do cumprimento das normas e regras
institucionais como mecanismos de defesa contra a ameaça que o novo representa,
como formas de se proteger dos imprevistos. No entanto, todo crescimento se
processa através de crises, e toda crise envolve a necessidade de abertura a
novas possibilidades existencias, o que é levado a cabo através da vivência de
um processo de transformação; a aprendizagem só é possível quando se valoriza
igualmente perguntas e respostas, dúvidas e certezas, a ingenuidade e o saber
(e os vários saberes não instituídos). Bleger (1987) fala que toda organização
tende a negar, em sua prática, o propósito para o qual foi criada, pois tende a
ter a mesma estrutura do problema que se propõe a enfrentar. Bleger ressalta
ainda que “na proposição tradicional existe uma pessoa ou grupo (um status) que
ensina e outro que aprende”, e “essa dissociação deve ser suprimida, porém tal
supressão cria necessariamente ansiedade devido à mudança e abandono de uma
condição esteriotipada” (p. 37). Nesse sentido, pode-se supor que o aluno seja
muitas vezes colocado em situações em que lhe seja ressaltado o quanto não
sabe, a fim de garantir ao professor o status do que sabe e ainda a posição de
quem detém o poder, posicionando-se como
aquele que não deve ser questionado na qualidade de seu saber ou na
legitimidade de seu poder. Ë como se o aluno precisasse continuar na condição
de ignorância, total ou parcial, para não ameaçar a muitas vezes frágil e
inconsistente
Pg 67 da revista
formação do professor, para não desestabilizar a estrutura
organizacional despótica que não lhe permite ser o detentor do saber sobre sua
realidade, necessidades e condições de vida
(e quantos casos não recebemos em clínicas psicológicas e em consultório
particular em que o aluno ficou anos e anos na escola e não chegou a ser
alfabetizado, ou já passou a identificar-se com esteriótipos que lhe são
conferidos por não corresponder ao padrão do aluno genérico: ficar sentado na
carteira horas a fio, escrevendo, lendo ou ouvindo a professora falar, fazer
lições que na maioria das vezes versam sobre padrões não familiares e
destituídos de significado para ele, etc....). Aquino cria um exemplo bastante
sensível para esse processo:
Deu-se
que certa vez, numa escola qualquer, transcorria uma aula normalmente. Após a
professora ter atingido sua explanação do ponto previsto para aquele dia, um
dos alunos a interrompe: “Professora, eu não entendi”. A professora explica o
ponto de novo. O aluno reafirma: “Não entendi!”. A professora, preocupada com o
cumprimento do programa, explica pela derradeira vez. O aluno retruca ao final:
“Eu não disse que não ouvi. Disse que não entendi”. (1997, p. 91)
Aquino comenta
sobre os possíveis desdobramentos de tal situação: há a possibilidade da
professora entender essas colocações como uma afronta e chamar a atenção da
criança, tentando calar-lhe a boca, perceber a dificuldade do aluno como uma
deficiência a ser suprida ou um problema a ser tratado (encaminhando-o para um tratamento
psicológico ou psicopedagógico), e no final o aluno acabará, de qualquer forma,
por se desinteressar pelas aulas, não indo bem nas provas padronizadas e
provavelmente repetirá de ano, sem que a professora e/ou a instituição em que
trabalha se questionassem a respeito de sua fala como representante do ponto de
vista do aluno diante de seus procedimentos, propondo-se a rever sua prática e
seus pressupostos.
No modelo de
ensino tradicional, parece que pelo menos uma parcela dos alunos precisa continuar
sendo a depositária da ignorância e do fracasso (como bodes expiatórios) para
redimir a escola de sua culpa por não corresponder plenamente aos seus
propósitos, usando-os como justificativa para seus métodos coercitivos e
anti-pedagógicos e para o seu abuso de poder, como se fosse preciso “ensinar os
que não sabem”, “socializar os sem modos”, aculturar, domesticar, etc., etc..
Toda essa dinâmica legitima e acarreta a rigidez de papéis em todos os escalões
da escola, e o aluno não será ouvido em suas razões e necessidades, nem
reconhecido em suas capacidades e contribuições a dar no processo de construção
de um conhecimento integrado ao auto-conhecimento e à vida, passando a ter que
se comportar como o aluno genérico – e os que se desviam da norma são rotulados
como fracassos escolares, como alunos-problema que precisam de corretivos, ou
se tratar, e “entrar nos eixos”. Mas com diz Carvalho:
O contexto escolar deveria ser o local por
excelência das tentativas próprias de solução de problemas, seguidas de um
exame crítico por parte do professor. Se é verdade que eventualmente aprendemos
de todos aqueles que nos rodeiam, é inegável que os professores e as escolas
têm no ensino e na aprendizagem não uma meta eventual, mas a razão de ser de
seu trabalho. Não existimos para decretar fracassos, mas para promover
aprendizagens. E nessa tarefa os erros, frutos das tentativas de operar com
novos conceitos e procedimentos, têm um papel fundamental, posto que a partir
de seu exame crítico se desenvolve o discernimento. (1997, p. 20)
Bleger (1987)
coloca que a repetição de condutas e normas de forma estereotipada destina-se a
evitar mudanças e novas ocorrências, evitando assim a ansiedade que elas
desencadeiam, mas o preço que se paga por isso é o bloqueio do ensino e da
aprendizagem, transformando esses instrumentos num meio de alienação do ser
humano. E já que o novo é temido pela instituição, que cria mecanismos de
controle para evitar sua irrupção, também a possibilidade de desenvolvimento
das potencialidades criativas de seu corpo docente e de sua clientela acaba por
ser negada e não fomentada, o que produz apatia, descontentamento e,
principalmente, desvitalização e desvalorização da dimensão do prazer inerente
ao processo de descoberta, ao processo de ensino-aprendizagem, atrelando-lhe
uma dose extra (indesejável e desnecessária) de dor e sofrimento.
Em todo o sistema de
ensino, há ênfase excessiva na palavra, mas na palavra desvitalizada,
desconectada de Eros, da personalidade total e da individualidade ... o aluno
... necessita e em muito de um trabalho que recupere a palavra significativa, a
palavra integradora do vivenciado, a palavra que permite à linguagem
constituir-se num itinerário associativo e elaborador das situações
experienciadas. E a palavra assim vivenciada volta a ser o logos da psique, que
consiste na raiz etimológica da própria Psicologia. (Freitas, 1990, p. 98).
Pg 68 da revista
Hillman (2001)
fala que a palavra controle significa “contra o rolo”, e que o controle busca
eliminar os obstáculos “que possam nos fazer sombra” e “prevenir a
interferência”, tendo um efeito conservador, o que nos remete novamente ao mito
de Crono, que engolia seus filhos para não ser questionado, confrontado e
destituído de sua posição hegemônica. Hillman ainda coloca que “em vez de se
aventurar à frente para
explorar e pesquisar territórios desconhecidos, o controle luta na retaguarda.
Inventariando tudo o que já aconteceu ... o controle, para manter sua
presunçosa posição de comando, depende de uma visão defensiva, e as qualidades
– exigência de lealdade, exatidão, suspeita do que está oculto, vigilância –
são qualidades paranóicas." (p. 116). E então ele fala do que se teme: a
perda de controle, expressa na mitologia pelo deus Dioniso:
Na nossa linguagem corrente, a expressão que
capta com mais simplicidade o modo dionisíaco é: "Deixar rolar". Não
apenas seguir a maré, flutuar sem bússula ou porto, mas fluir com os movimentos
da psique ... Dioniso foi identificado com a seiva da vinha, as gavinhas da
planta, o leite nutritivo – os sucos criativos que são a alma de todo sistema.
Não se pode controlar Dioniso, mas é possível exercer controle de um modo
dionisíaco, não se separando da inexplicável força "potencializadora"
que gera toda a organização... nossas idéias sobre o controle e a força insana
que empregamos no esforço de assumir o controle, manter o controle e não perder
o controle, tanto de nós mesmos quanto das organizações, derivam da tentativa
de subjugar Dioniso. (p. 118-119).
Dioniso
é o deus do êxtase, do entusiasmo e da transformação, um deus agrário e
estrangeiro (que não se adequava aos moldes tradicionais do Olimpo por descer
ao nível dos homens e propor uma nova ordem, de relações simétricas,
dialógicas), ligado ao bode (aos instintos e à natureza) e sensível às questões
da exclusão e da diferença. Ele propunha, através de seus rituais orgíacos,
restituir a fertilidade à terra de nossa psique e à todas as nossas relações,
olhando-nos de frente e nos levando a olhar o outro como um espelho, retirando-lhe
as projeções das sombras que não queremos reconhecer como parte de nossa
personalidade. Ele incitava, além disso, a iluminação de nossa divindade
interior (nossas potencialidades não atualizadas) e a renovação de nossas
capacidades através da troca profícua e igualitária com o outro (e com os
nossos “outros eus”), o que proporciona a expansão de nossa consciência,
ampliando o conhecimento de si próprio, do outro e do mundo, possibilitando a
adoção de pontos de vista mais abrangentes, lançando novos olhares sobre velhas
questões, que assim se revelam sob novos aspectos.
Por
outro lado, o elemento que Cronos-Saturno representa é a terra, é preciso ter
um lugar, ter um chão (território para receber e gerar as sementes do novo)
para aprofundarmos nossas raízes, para podermos então sonhar, nos nutrir,
crescer em direção ao céu (Úrano - imaginário, novo, potência fertilizadora).
Quando Saturno acaba por ser destituído de seu conservadorismo, ele se
transforma num velho sábio e benevolente, morando no reino dos bem-aventurados,
de onde passa a enviar aos homens bons conselhos... As polaridades puer x senex
são tão opostas quanto complementares, e é desejável que possam estar em
relação (Úrano - potência fertilizadora, instituinte, latente x Saturno - poder
conservador, instituído, patente), podemos e precisamos conjugar os dois, sem
supervalorizar nenhum deles em detrimento do outro, para que a criatividade
possa ser aliada à capacidade de realização. Todo conhecimento e toda teoria
que se pretendam úteis à vida, nascidos da elaboração simbólica de algum
conteúdo significativo, são análogos à obra de arte: inacabada (como o próprio
homem), aberta ao outro, ao diálogo e à sua própria recriação, o que faz com
que seja sempre atual, apesar de datada, e que tenha pulsação, movimento,
vibração, aura...
Na
busca do homem por aproximar-se do plano divino e resgatar assim a unidade
primordial entre a Terra (Mãe, Feminina) e o Céu (Pai, Masculino), ele
construiu torres. Como cito em minha tese de doutorado (2001), “a torre
representa o conhecimento e as construções humanas – como por exemplo a ciência
e a cultura”, mas essas construções muitas vezes acabam se “traduzindo numa
tentativa inflada de auto-deificação. Ao subirmos nela temos uma visão mais
ampla do que nos cerca, mas também corremos o risco de nos esquecermos do chão
que nos alimenta, das nossas limitações como ser-no-mundo com suas
contingências ... e ficar encerrado nela pode ter como conseqüência o
auto-isolamento que nos distancia do outro e nos torna estéreis (como Rapunzel
em sua torre)” (p. 257-258).
Pg 69 da revista
Na
história da ciência ocidental, o conhecimento fragmentou-se a tal ponto em
especialidades e setores distintos que se transformou numa imensa Torre de
Babel onde o diálogo ficou até certo ponto inviabilizado, pois não houve um
movimento concomitante de integração da diversidade num todo coerente. É como
fazermos uma colagem que represente um ser humano juntando os olhos de uma figura, o nariz de outra,
o tronco de outra, e assim por diante - o que resulta daí é na maioria das
vezes um ser monstruoso, desarmônico e desfigurado. Atualmente, estamos num
momento de mudança de paradigma, movido pela crise do racionalismo positivista
que separa as luzes das sombras, que contrapõe o sujeito ao objeto, que pregou
durante séculos uma neutralidade desumanizadora que hoje coloca em risco a
própria sobrevivência de nossa espécie e do planeta. Na educação, esse modelo
de ciência refletiu-se na separação quase irreconciliável da teoria da prática,
afastando o conhecimento do auto-conhecimento, a crítica da auto-crítica, a
razão da sensibilidade, o eu do outro. Durante séculos privilegiou-se a
percepção e o pensamento abstrato, desconsiderando-se a subjetividade, o
imaginário, a arte e as emoções como fonte e processo de conhecimento e
aprendizagem. Em resposta à fragmentação do saber surge a necessidade de pensar
o homem, a cultura e suas práticas simbólicas sob um novo olhar, que contemple
a complexidade do ser em suas contradições essenciais, as quais geram a energia
e as tensões necessárias ao seu crescimento.
Edgar
Morin, em seus vários escritos, fala do paradigma da complexidade, que envolve
a necessidade de trabalhar os pares de opostos de forma recursiva e dialógica,
reunidos numa unidade complexa que não é redutível e nem explicável pela
simples soma de suas partes (como a colagem que citei acima). Diante disso, as
soluções a que chegamos na tentativa de gerenciar os conflitos são sempre
transitórias, instáveis e temporárias. Cada Caos organizado em Cosmo precisa
renunciar à hegemonia e voltar a ser semente de uma nova cosmogonia, como a
semente que frutifica a partir da morte do fruto que lhe deu origem,
alimentando-se dele, incorporando-o e expandindo-o ao mesmo tempo – o paradoxo
do qual falei no começo do texto.
Do
diálogo entre o poder e a potência, o instituído e o instituinte, o patente e o
latente, a consciência e o inconsciente, nasce o símbolo como mediador, e como
diz Teixeira (1999), as práticas simbólicas são também práticas educativas, na
medida em que organizam e estruturam a socialidade. Por isso, ao se trabalhar
com os grupos e suas práticas simbólicas no contexto escolar, pode-se favorecer
o movimento de conferir voz e visibilidade aos sussurros e às tramas
subterrâneas que permeiam as normas e regras coletivas (o que pode ser
efetivado através de grupos operativos, oficinas de criatividade, workshops,
etc.), possibilitando o resgate da noção de sujeito em sua dimensão renovadora,
criativa e reinventante do real.
Há
um mito de criação órfico que conta que o mundo nasceu de um ovo posto por Nix
(Noite), fecundada pelo Caos, e que de suas metades nasceram o Céu e a Terra, e
de seu interior saiu Eros, que desde então circula entre os dois, tentando
reuni-los, como o arco-íris. Toda imagem é simbólica, e todo símbolo é, como
Eros, um mediador entre as polaridades. Hermes era também um deus mediador
entre os reinos ctônico, terrestre e celeste, podendo circular livremente entre
eles, e entre os homens e os deuses, além de ser um deus psicopompo – condutor
de almas para o Hades. O seu caduceu, que hoje é o símbolo da cura e da
medicina, expressa o poder não centralizado, mas que circula por todos (e pelas
várias dimensões da existência, interligando-as), e as duas cobras nele
enroladas representam as polaridades em constante relação, o que é um movimento fecundo e
promotor de saúde mental e qualidade de vida.
A arrogância defensiva do conhecimento instituído poderia e
necessita começar a ceder lugar à sabedoria que nasce do respeito e aceitação
da diversidade como fonte de riqueza - noção já presente na ecologia - dos
diversos pontos de vista, à possibilidade de convivência criativa e produtiva
entre as diferenças, pois a violência só se instala quando a força, a coragem e
a combatividade deixam de temperar-se com o amor, a compreensão e a
receptividade ao outro – os opostos se auto-limitam, um dá a medida do outro,
criando um equilíbrio dinâmico e criativo em que a paz pode ser a expressão das
necessidades (de ser, expressar, conhecer, amar, nutrir e ser nutrido, ter um
lugar, etc.) satisfeitas.
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Pg 70 da revista
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[1] Pós Doutoranda pela Faculdade de Educação da USP.
Doutora em psicologia Escolar (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP).
Psicóloga (USP) e Arte-educadora (FAAP). Coordenadora e Professora da Pós
Graduação em Arteterapia da UNIP – Universidade Paulista.